terça-feira, 28 de agosto de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


Os homens andam todos contentes. As mulheres também, é claro, afinal têm trabalhado tanto como eles e praticamente sem distinções de tarefas, mas agora são aí em menor número pois, com o aumento da natalidade que por aqui anda, um terço delas vive ocupada com as atribulações e responsabilidades da maternidade. A tradição pesa e de que maneira e ainda ontem à noite houve uma longa conversa sobre as diferenças do género, especificamente no que se refere aos papéis de cada um e apesar de termos chegado à conclusão que não faz sentido pensar que uma fêmea possa ser incapaz de executar os mesmos trabalhos que é hábito serem os homens a fazer e de enfrentarem os mesmos desafios e aqui, o corpo e a força da Graziela seriam, desde logo, uma boa corroboração empírica disso, foram as próprias damas que se apressaram a chamar a si as melhores destrezas e saberes para darem conta do recado que os recém-nascidos nos trouxeram. Naturalmente, o calor, com a leveza que trás às roupas e a despreocupação que acrescenta aos convívios sob o tecto das estrelas, lá terá a sua quota-parte de contribuição no elevar do ânimo de cada um de nós e com luares que parecem pratear a noite, mais razões haverão para que à rua saiam rostos sorridentes e tranquilos, de quem repousa, merecidamente, enlevado pela satisfação de ver amadurecer o fruto do seu empenho. É precisamente esse o principal motivo da alegria que é mais exuberante nos homens e por isso os destaquei na minha referência à manifestação de euforia que paira no ar. A vida tem curiosidades incríveis e pessoalmente vivo convencida que, por muitas vezes que vivesse, jamais conseguiria sequer aproximar-me de desvendar muitos dos mistérios que em ela se revelam e, no fundo, em parte, igualmente a preenchem. Numa destas noites jantámos em casa do Félix e da Éster e depois deixámo-nos tagarelar pela noite dentro. Pelos vistos anda a pensar fazer uma recolha de cantares populares das redondezas, para o que só está à espera de uma nova oportunidade em que a labuta nos dê um pouco mais de alívio. Mas houve uma troca de impressões cheia de interesse em torno das ideias da bondade e da justiça. Eles são um pouco mais velhos que nós e segundo apurei, ela foi finalista no ano em que eu entrei para a Faculdade e, pese embora a frequência de cursos diferentes, será certamente por isso que eu não me recordo dela nem ela de mim. Foi justamente a nossa anfitriã quem justificou a preferência pela justiça em face da bondade, uma vez que não poderemos ser igualmente bons para com a vítima e o seu algoz, muito embora seja possível aplicar a justiça a ambos e, desse modo, sermos equitativamente justos com um e com o outro. Foi um serão encantador e, com efeito, tenho dado por mim a pensar naquelas palavras, amiúde, por entre as horas do vigor braçal destas jornadas. E a verdade é que não são raras as cenas quotidianas em que uma boa intenção resulta em consequências perversas. É um pouco isso que está acontecendo connosco, se bem que em sentido inverso. Do mundo continuamos apenas com aquilo que vamos apurando pelos jornais. Na Vila haverá, com toda a certeza, quem possua rádio e, pela calada dos cuidados que as paredes têm ouvidos, possa até escutar novidades em estações estrangeiras e assim saber um pouco mais, como o paizinho que disso me vai dando conta nas cartas que me escreve. Mas nenhum de nós tem grandes intimidades nesse exterior e muito menos para assuntos que facilmente podem deslizar para aquilo que faz as praças ficarem desertas e silenciosas e depois ainda permanecemos na condição de apenas nos fornecermos, a esse nível, ao sábado. No mundo permanece a demência mas se bem percebo as entrelinhas do que o paizinho me vai escrevendo, há ténues sinais de esperança no horizonte, pois os fascistas não são assim tão invencíveis quanto a sua propaganda pretende. No entanto persistem alapados na Europa onde espalham o seu veneno que tanta dor e sofrimento tem causado. E nós aqui sem dar por nada, felizes, creio poder dizê-lo, como se do lado de lá este paraíso se estendesse por todos os lugares. Mas é aí que reside a crueldade da ironia se me lembrar que as desgraças que se abatem sobre os outros acabam por redundar num tremendo benefício para nós. O primeiro dos silos, o previamente existente e que mais não necessitou do que a azáfama de uma reparação ainda que profunda, o primeiro dos silos que pretendemos vir a ter, dizia, está pronto. Haveremos de erguer um outro ao lado daquele para que possamos dar conta das produções que pretendemos diversificar quanto aos cereais. Por enquanto temos um e esse, para já, será suficiente para armazenarmos temporariamente os grãos de trigo que brevemente iremos colher e cujo escoamento está assegurado pela procura extraordinária que nos demanda a partir dos países envolvidos neste horrível conflito bélico. E se mais tivéssemos para o efeito mais teríamos vendido. Dir-se-ia que o mal de uns é o bem de outros, mas a verdade é que não temos qualquer responsabilidade no desenrolar da tragédia que, bem vistas as coisas, seria ainda maior se não fosse a produção destes alimentos. Temos pois fartos motivos para estarmos contentes e entre todos são os homens os que manifestam maior exuberância, pensando a fundo, até pelo facto de no que diz respeito à parcela com que, para tanto, os novos nascimentos contribuem, estarem eles arredados das maiores preocupações.
A mãezinha teve a simpatia de me enviar as receitas dos doces com que a minha avó e sua sogra nos presenteava. Tenho verdadeiramente saudades de algumas delas e tudo farei para que no próximo Inverno venhamos a ter geleias e compotas na despensa. Só espero que saiam bem, mas se não for à primeira tentativa, num dos próximos anos haverei de conseguir alguns daqueles sabores que tanta gulodice me incutiram. Vou pedir à Catarina que me ajude que entre duas será mais fácil e não sei se ela saberá destas artes o bastante para se abastecer com estes pequenos luxos.
O Manuel acabou de me abraçar pelas costas. Chegou a hora de apagar a chama destes candeeiros.

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