terça-feira, 14 de agosto de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


Grandes obras, até parece que somos um verdadeiro colosso económico, um daqueles potentados que conseguem movimentar milhões e com isso fazer crescer fábricas e cidades, ao redor, como é o caso da CUF, no Barreiro que dizem ter quilómetros de via-férrea no interior das instalações e dá trabalho a milhares de pessoas, provocando o aparecimento de novos bairros e permitindo que o comércio cresça e se multiplique e toda uma nova urbe se acrescente e transforme aquilo que foi uma pequena vila numa pequena cidade. Ali há o dinheiro do Senhor Alfredo da Silva que talvez seja o homem mais rico e poderoso de Portugal. Nem por sombras com tanto, aqui há a disponibilidade do José Pedro a quem, uma vez mais, teremos que saldar uma outra dívida contraída para pagar materiais e o uso de máquinas e alguma mão-de-obra a que não pudemos fugir. Mas a parte de leão do esforço, neste nosso caso, é o de todos nós, homens e mulheres que de Sol a Sol e até em muitas noites andámos numa labuta gigantesca e sem tréguas para, onde pululava o mato, estendermos a muralha de terra, pedregulhos e entulho sobre a qual estamos agora assentando a barreira que fará a nova represa que não só alargará consideravelmente a área de superfície líquida daquela que agora existe e virá a submergir quando a nova estiver completamente cheia, como igualmente irá multiplicar em muito o volume de água armazenada. Pelos planos dos nossos agrónomos, teremos reservas muito acima das necessidades de rega que prevemos vir a usar e ainda o bastante para, sem que minimamente belisquemos os excedentes que hão-de prevenir anos de secas, podermos abastecer com água potável umas quantas vezes o número de casas que temos. Por enquanto ainda usamos as cisternas em que recolhemos o líquido a partir dos furos para que depois possa correr pelos canos e sair pelas torneiras. Haja no entanto engenho e dinheiro que, à semelhança das conversas, também as realizações acabam por ser como as cerejas. Daí que se fale da incontornável construção de um reservatório de água no alto da colina e o luxo dos luxos, para mim, de todo, incompreensível, uma pequena unidade para tratamento daquela que se destina ao consumo doméstico. É bonito de se ver o entusiasmo com que todos discutimos estes assuntos no salão do casarão que continuamos a utilizar como uma espécie de sala de convívio para os serões em comum em que há sempre tanta coisa a debate e decisões a tomar. E já está pronto o projecto de distribuição da rede de rega pelos campos de cultivo que, pela reunião de linhas rectas de tubagens e tanques, virá a permitir o milagre que fecunda as sementes. Ora se é bom de se ver o afinco com que todos nos estamos a atirar para este mãos à obra em que ninguém rejeita esforços, melhor é de ver a árvore a dar fruto, o mesmo é dizer, ver a paisagem ser alterada pelos melhoramentos que aí vamos introduzindo. E com tudo isto e com as colheitas que se aproximam, chegou o momento de nos decidirmos pela forma legal em que vamos operar. Apesar das diferenças de pontos de vista em confronto, não suscitou grandes dúvidas a escolha que acabámos por fazer. Ele houve quem falasse de capitalismo nos campos e chegasse a propor a ideia de uma sociedade por quotas em que todos seríamos accionistas. Seria, no dizer dos defensores, a melhor forma de laborarmos na defesa dos interesses lucrativos do empreendimento e, por via disso, de conseguirmos alcançar a riqueza para todos que seria assim o principal objectivo por que estamos aqui. Mas isso esbarrou na objecção comezinha que as palavras do senhor Abel sintetizaram. A ele pouco lhe importavam os ouros e as pérolas ou as penas de pavão. Basta-lhe que viva saudável e com o suficiente para o fazer com toda a dignidade e poder ser feliz. É precisamente isso que eu pretendo e, ao que parece, a maioria dos outros também e logo se formulou a dúvida sobre a própria noção de riqueza, o que é isso de enriquecermos? Ter ganhos e acumular lucros, com toda a certeza que serão propósitos que não poderemos escamotear e deixar de lado. Antes de tudo pelo simples facto de termos que pagar aquilo que o José Pedro adiantou por todos. Seja como for, concordo com o meu marido que sustentou não poder ser isso um fim em si e para quem a riqueza alcançada terá que se traduzir, em primeiro lugar, na melhoria das nossas condições de vida e obviamente de modo a que a todos calhe equitativamente. Aliás, ficou aceite que nada impede aqueles que queiram ter mais de procurarem obter o excedente dos seus quintais que podem muito bem vender, ou até de usarem as artes que possuam para delas, não descurando os respectivos papéis nesta nossa empresa, tirarem algum rendimento extra. Assim, dado já termos visto que no fim de contas todos acabaram por confluir com contributos mais ou menos paritários, pelo menos ao nível da importância de cada um, foi votada e aprovada a proposta do Quico para que tomássemos a forma de uma cooperativa. O José Pedro ainda trouxe à defesa a autoridade do Professor António Sérgio nesta matéria, mas o convencimento dos outros nem entrou em consideração com tais minudências teóricas. Era evidentemente mais que justo que, respondendo pelos mesmos deveres, todos tivéssemos os mesmos direitos de propriedade e decisão que tal organização confere. O mais engraçado é que matámos dois coelhos com a mesma cajadada. Ninguém quer a polícia política à perna e ainda mais tão só por causa de um nome e por isso foi liminarmente rejeitada a opinião do senhor Abel para darmos a pompa da denominação evocativa de ideais revolucionários como o “Amanhã Vermelho” que ele propunha. Intimamente não consegui deixar de me rir do horror que vi nalgumas expressões perante o arrojo da proposta. Talvez por isso tenha sido incapaz de conter uma gargalhada perante a inteligência com que resolveu o dilema, quando baptizou o local onde estamos com o nome de Vale da Esperança, argumentando que poderíamos assim chamar à nossa, a Cooperativa Agrícola de Produção do Vale da Esperança. Houve aplauso efusivo e todos gostaram do nome. O pequeno Adão é pois o primeiro natural do Vale da Esperança. Mas não se pense que é só trabalho aquilo que nos ocupa ainda que o dito seja intenso e diariamente prolongado e o primeiro dos factores que a mim atira para sonos pesados e em que me afundo mal as pálpebras se unem. O cansaço pode ser muito e seguramente, neste caso, não estarei a falar apenas de mim. Apesar disso, ainda sobram algumas energias para algo mais e numa destas noites menos atarefadas, o Félix ofereceu-nos um recital de violino e, para aqueles que o queiram, disse-se disposto a dar aulas de música. Considero que foi um brinde pelo nosso esforço e de pequeno só teve os quarenta e cinco minutos de duração. A festa também faz parte da vida, dá-lhe um repouso que ao sono não cabe e dá-lhe um encanto que não se contem na simples contemplação de um jardim de beleza. A euforia liberta pesos que se acumulam nos espíritos. No fim, ficamos mais fortes e contentes o que não é de somenos.

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