quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Sudário da Alma


por Abdul Cadre

Neste entrado terceiro milénio, apesar do progresso industrial e das maravilhosas possibilidades prometidas pela comunicação global, em que todos seríamos vizinhos, não nos é permitido ainda o estabelecimento duma humanidade verdadeiramente adulta, livre do medo, da superstição e da indigência. Não quero parecer exagerado e dizer: muito pelo contrário!
Muitos crentes, confundindo os seus mais íntimos medos e desejos com a realização da vida e do mundo, iludem-se, julgando que basta que as folhas do calendário mudem para que eles e o mundo mudem também. Autoflagelam-se uns com previsões apocalípticas, outros entram em transe com imaginadas eras prontas a viver sem nenhum esforço, tudo graças a inventados portais cósmicos do esoterismo light. Tudo bate certo num mundo de pronto a vestir, pronto a comer e – por que não? – pronto a pensar.  
 Nesta estação de saldos do império, a queda dos valores tradicionais parece deixar-nos mais desarmados do que nunca e o vazio deixado pelo abandono das fórmulas antigas de viver a espiritualidade torna-nos ansiosos, sensíveis aos apelos insanos dos novos «profetas» apocalípticos. Destes, há para todos os gostos: desde os que, para desinfetar a Terra da nossa presença sacrílega, nos querem gasear com sarin, aos que, suicidando-se coletivamente, esperam apanhar boleia num disco voador arrastado na cauda dum cometa.
Autoproclamando-se (ou não) mensageiros do New Age, mas de qualquer modo e sempre bebendo das águas promíscuas dessa contracultura conciliadora de todas as loucuras e de todas as crenças, credos e crendices, surgem-nos a esmo profetas dos últimos dias, adventistas e milenaristas para todos os temidos e para todos os desejados apocalipses, vangloriando-se invariavelmente de serem detentores de «verdades» naturalmente «supremas». Para tais verdades inventadas, convenhamos que o tecido social das nações mais industrializadas está bem preparado e adubado de tristeza e descaminho, pela chamada crise das ideologias, pelo modo de produção de tirar aos pobres para dar aos ricos (dita crise económica e financeira), pela permissividade (muitas vezes confundida com tolerância) e pelo vazio já referido.
Para agravar, temos depois um ensino eivado dum positivismo empedernido, visando tão-só o mais comezinho dos utilitarismos. Para engrossar ainda mais o caldo, estabeleceu-se no terreno, empurrada pelos «critérios de audiência», uma comunicação de massas virada, quase que exclusivamente, para a excitação e completamente despida de espiritualidade e alegria. Isto é o bastante e a sobra para apodrecer vilmente a nossa chama interior. De tal apodrecimento, germinam depois os medos que andam pelas ruas e geram propaladas inseguranças, que vamos contabilizando, sem nos apercebermos que eles não passam do bolçar do que nos vai dentro; não são fenómenos externos nem a maldição da fada má. Eis então que a nossa confusa insegurança apela a proteções exteriores, venham elas do alto que vierem: institucionais, naturais, sobrenaturais ou míticas. Tentamos assim apaziguar os nossos medos com as drogas e as ilusões julgadas mais apropriadas, como o trabalho, o progresso, o consumismo, os divertimentos anestesiantes, ou a droga stricto sensu. Soltam-se então, do baú de Eros e Thanatos, estranhos e reprimidos antigos e patológicos desejos de sofrer, e aí, os nossos medos avulsos ajoelham em vassalagem a um medo maior.
Trazidas pelo exacerbar de mil vãs expectativas criadas à volta de misticismos livrescos, orientalismos mal assimilados e transcendentes meditações para todas as soluções, caem sobre nós as mais desconexas vozes, num coro caótico, fomentador de novas crenças com velhos atavios… e nós, com a dor difícil que nos atormenta, rendemo-nos cega e facilmente.
Penso que este desvario que se respira tem muito a ver com a perda de sentido do eterno e tudo a ver com a psicológica aceleração do tempo: nada permanece e tudo é descartável: o emprego, o desejo, a confiança, o próprio sentir. E, no meio de tudo isto, perdem-se os melhores de nós — os que de nós são fruto — entre fumos alienantes e apatias marmóreas; morre em nós o próprio olhar no abandono, na bisca lambida, na desobjetivação da vida, na desprogramação do suor.
O ponto de contato entre o tempo e a eternidade — diria Agostinho da Silva — seria o amor!… Mas este esvai-se exangue, perdido de avulsos e incontroláveis desejos. E ele que é um e onde chega tudo acrescenta, faz-se plural e falso e logo tudo diminui. O dinheiro e o poder, o prestígio e o ter erguem os muros invisíveis que não nos deixam ver do outro a diferença que nos enriquece nem dar-lhe de nós o espelho que o enalteça.
De companhia — mas sós! — seguimos pelas estradas que não escolhemos com o passo de conveniência do monismo plúmbeo de quem não quer problemas e vai cansado, mas sem saber para onde.
Foi pelo desejo que limitámos em nós a liberdade de SER; é pela incapacidade de vermos no outro o que nele é beleza e eternidade que lhe negamos a liberdade e a diferença e o queremos agrilhoado como nós, para nossa própria justificação.
Não entendermos que todos somos estrelas ímpares de brilho e de destino, faz deste um fado triste e da vida um luto em lágrimas. Não ser capaz de ver de cada coisa o nosso entendimento dela e, como se fosse o nosso, o entendimento do outro, faz a raiz do conflito – de todos os conflitos –  e, em última instância, justifica a guerra.
Colocarmo-nos no lugar do outro, eis o enriquecimento da visão do mundo.
Faz tempos, estava ainda entre nós o saudoso Professor Agostinho da Silva, um grupo de pessoas, maioritariamente muito «new age», contava das suas infelicidades, motivadas por, numa quinta em que se reuniam para saudar a natureza e praticar a inofensividade, não terem domingos de paz, como mereciam, por causa de uns malvados caçadores que em permanentes puns-puns deitavam abaixo tudo o que era bicho e mexia. Queriam do Professor a condenação que o seu juízo tinha por acertada. Ele ouvia, ouvia e por fim respondeu assim: «Têm razão, claro, que coisa desagradável… mas, por outro lado, já viram quanto apuro técnico, quanto treino, quanta destreza, apontar ao passarinho, que é uma coisa tão pequenina, premir o gatilho e acertar?!…»
Pois é. Partilhar o mundo com os que nos são próximos é coisa fácil; difícil é aceitar as diferenças, quando desejávamos era o poder de os submeter aos nossos valores, às nossas conceções...
Numa quinta, algures no Alentejo, na Síria, em Timor, na Guiné, na Patagónia…
Que falta faz um míssil, quando nos contrariam, para roubarmos definitivamente o tempo ao inimigo.
Que falta faz o amor – a caritas – para que o tempo se torne eternidade!

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