por Abdul Cadre
Neste
entrado terceiro milénio, apesar do progresso industrial e das maravilhosas
possibilidades prometidas pela comunicação global, em que todos seríamos
vizinhos, não nos é permitido ainda o estabelecimento duma humanidade verdadeiramente
adulta, livre do medo, da superstição e da indigência. Não quero parecer
exagerado e dizer: muito pelo contrário!
Muitos
crentes, confundindo os seus mais íntimos medos e desejos com a realização da
vida e do mundo, iludem-se, julgando que basta que as folhas do calendário
mudem para que eles e o mundo mudem também. Autoflagelam-se uns com previsões
apocalípticas, outros entram em transe com imaginadas eras prontas a viver sem
nenhum esforço, tudo graças a inventados portais cósmicos do esoterismo light.
Tudo bate certo num mundo de pronto a vestir, pronto a comer e – por que não? –
pronto a pensar.
Nesta
estação de saldos do império, a queda dos valores tradicionais parece
deixar-nos mais desarmados do que nunca e o vazio deixado pelo abandono das
fórmulas antigas de viver a espiritualidade torna-nos ansiosos, sensíveis aos
apelos insanos dos novos «profetas» apocalípticos. Destes, há para todos os
gostos: desde os que, para desinfetar a Terra da nossa presença sacrílega, nos
querem gasear com sarin, aos que, suicidando-se coletivamente, esperam apanhar
boleia num disco voador arrastado na cauda dum cometa.
Autoproclamando-se
(ou não) mensageiros do New Age, mas de qualquer modo e sempre bebendo das
águas promíscuas dessa contracultura conciliadora de todas as loucuras e de
todas as crenças, credos e crendices, surgem-nos a esmo profetas dos últimos
dias, adventistas e milenaristas para todos os temidos e para todos os
desejados apocalipses, vangloriando-se invariavelmente de serem detentores de
«verdades» naturalmente «supremas». Para tais verdades inventadas, convenhamos
que o tecido social das nações mais industrializadas está bem preparado e
adubado de tristeza e descaminho, pela chamada crise das ideologias, pelo modo
de produção de tirar aos pobres para dar aos ricos (dita crise económica e
financeira), pela permissividade (muitas vezes confundida com tolerância) e
pelo vazio já referido.
Para
agravar, temos depois um ensino eivado dum positivismo empedernido, visando
tão-só o mais comezinho dos utilitarismos. Para engrossar ainda mais o caldo,
estabeleceu-se no terreno, empurrada pelos «critérios de audiência», uma
comunicação de massas virada, quase que exclusivamente, para a excitação e
completamente despida de espiritualidade e alegria. Isto é o bastante e a sobra
para apodrecer vilmente a nossa chama interior. De tal apodrecimento, germinam
depois os medos que andam pelas ruas e geram propaladas inseguranças, que vamos
contabilizando, sem nos apercebermos que eles não passam do bolçar do que nos
vai dentro; não são fenómenos externos nem a maldição da fada má. Eis então que
a nossa confusa insegurança apela a proteções exteriores, venham elas do alto
que vierem: institucionais, naturais, sobrenaturais ou míticas. Tentamos assim
apaziguar os nossos medos com as drogas e as ilusões julgadas mais apropriadas,
como o trabalho, o progresso, o consumismo, os divertimentos anestesiantes, ou
a droga stricto sensu. Soltam-se então, do baú de Eros e Thanatos,
estranhos e reprimidos antigos e patológicos desejos de sofrer, e aí, os nossos
medos avulsos ajoelham em vassalagem a um medo maior.
Trazidas
pelo exacerbar de mil vãs expectativas criadas à volta de misticismos
livrescos, orientalismos mal assimilados e transcendentes meditações para todas
as soluções, caem sobre nós as mais desconexas vozes, num coro caótico,
fomentador de novas crenças com velhos atavios… e nós, com a dor difícil que
nos atormenta, rendemo-nos cega e facilmente.
Penso
que este desvario que se respira tem muito a ver com a perda de sentido do
eterno e tudo a ver com a psicológica aceleração do tempo: nada permanece e
tudo é descartável: o emprego, o desejo, a confiança, o próprio sentir. E, no
meio de tudo isto, perdem-se os melhores de nós — os que de nós são fruto — entre
fumos alienantes e apatias marmóreas; morre em nós o próprio olhar no abandono,
na bisca lambida, na desobjetivação da vida, na desprogramação do suor.
O
ponto de contato entre o tempo e a eternidade — diria Agostinho da Silva —
seria o amor!… Mas este esvai-se exangue, perdido de avulsos e incontroláveis
desejos. E ele que é um e onde chega tudo acrescenta, faz-se plural e falso e
logo tudo diminui. O dinheiro e o poder, o prestígio e o ter erguem os muros
invisíveis que não nos deixam ver do outro a diferença que nos enriquece nem
dar-lhe de nós o espelho que o enalteça.
De
companhia — mas sós! — seguimos pelas estradas que não escolhemos com o passo
de conveniência do monismo plúmbeo de quem não quer problemas e vai cansado,
mas sem saber para onde.
Foi
pelo desejo que limitámos em nós a liberdade de SER; é pela incapacidade de
vermos no outro o que nele é beleza e eternidade que lhe negamos a liberdade e
a diferença e o queremos agrilhoado como nós, para nossa própria justificação.
Não
entendermos que todos somos estrelas ímpares de brilho e de destino, faz deste
um fado triste e da vida um luto em lágrimas. Não ser capaz de ver de cada
coisa o nosso entendimento dela e, como se fosse o nosso, o entendimento do
outro, faz a raiz do conflito – de todos os conflitos – e, em última
instância, justifica a guerra.
Colocarmo-nos
no lugar do outro, eis o enriquecimento da visão do mundo.
Faz
tempos, estava ainda entre nós o saudoso Professor Agostinho da Silva, um grupo
de pessoas, maioritariamente muito «new age», contava das suas infelicidades,
motivadas por, numa quinta em que se reuniam para saudar a natureza e praticar
a inofensividade, não terem domingos de paz, como mereciam, por causa de uns
malvados caçadores que em permanentes puns-puns deitavam abaixo tudo o que era
bicho e mexia. Queriam do Professor a condenação que o seu juízo tinha por
acertada. Ele ouvia, ouvia e por fim respondeu assim: «Têm razão, claro, que
coisa desagradável… mas, por outro lado, já viram quanto apuro técnico, quanto
treino, quanta destreza, apontar ao passarinho, que é uma coisa tão pequenina,
premir o gatilho e acertar?!…»
Pois
é. Partilhar o mundo com os que nos são próximos é coisa fácil; difícil é
aceitar as diferenças, quando desejávamos era o poder de os submeter aos nossos
valores, às nossas conceções...
Numa
quinta, algures no Alentejo, na Síria, em Timor, na Guiné, na Patagónia…
Que
falta faz um míssil, quando nos contrariam, para roubarmos definitivamente o
tempo ao inimigo.
Que
falta faz o amor – a caritas – para que o tempo se torne eternidade!
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