segunda-feira, 30 de junho de 2014

REAL... IRREAL... SURREAL... (86)

Os Jogadores  de Cartas, Cézanne, 1890
Óleo sobre Tela, 45x57cm

ROTINA DE UM HOMEM VELHO

Raramente falava com palavras… mas eram repletos os seus silêncios. E todos nós sabíamos o significado de cada um deles. 
De manhã, o primeiro silêncio. Quieto. Um comprimido em jejum e um outro que desde novo tinha que tomar para toda a vida. 
A seguir, um silêncio com gestos calculados acompanhava-lhe o café com leite e o pão macio. No fim, o comprimido das dores, que nem aquecia nem arrefecia, mas que com a idade dele mal não havia de fazer… 
Eram assim os seus primeiros silêncios do dia. 
Sabiam-se entendidos e permaneciam enquanto a vida era já quase toda. 

Todos os dias, às quatro da tarde, ele, o Dr. Veiga, o Paulo da Fazenda e o Zé das Figueiras encontravam-se no café. Chegavam exatos, de muitas horas iguais. Não falavam com palavras… mas eram fartos os seus silêncios. Jogavam uma partida de dominó e apenas ele sorria ao ganhar. Os outros arrumavam as peças.
Às quatro e meia ia lanchar. Todos ali sabiam as horas. Era o tempo escancarado da rotina precisa de um homem velho. De uma vida feita cada vez mais. Já quase toda.

Os miúdos corriam por ali. 
E um novo silêncio buscava num olhar longe o sossego de outro tempo. Era de novo ele e os miúdos brincavam fora para não incomodarem o paizinho. 
Súbito, um silêncio gelado de morte e de ausência. Fazia-lhe tanta falta… 
Uma lágrima resignava-se na memória certa e sem futuro ignorado. Conhecia-se assim, inevitável. 
Pesavam-lhe os silêncios quando a vida se chegava e sobravam-lhe as palavras. Por isso, nunca dizia nada. Nos seus olhos, uma quietude intencional.

A sopa de ovo. O pão migado. Um pouco de azeite em cru e uma pitadinha de sal.
Comia vagarosamente e apenas se sentia o barulho metálico da colher, batendo ritmadamente no prato.
Acabada a refeição da noite, tirava a loiça e dobrava cuidadosamente a toalha. À sexta era o dia de a colocar para lavar. Nos outros dias, seguiam-se as notícias na televisão. 
O comprimido adormecia-lhe então a certeza do fim e fechava-lhe os silêncios do dia. 

Quando a vida se fez toda nele, em mim restou a pena de um gesto perdido. Talvez uma carícia…
Porque o tempo é sempre rápido demais.

E o silêncio, esse, é certo.


Maria Teresa Bondoso

4 comentários:

MJC disse...

Para quê mais palavras se elas estão todos aqui?
Nem mais, nem menos, justamente as necessárias para permitirem em nós o silêncio que possibilita a audição perfeita.
E no percurso entre a palavra proferida e a calma calada do depois sobe-se mais um degrau de sabedoria.
E é esteticamente perfeita e bela que que se nos apresenta sorrindo e nós, claro, sorrimos também.

A "moldura" mais uma vez é, também, perfeita.

Permitam pois o envio deste abraço. Grande e, em silêncio.

Manuel João Croca

Unknown disse...

Obrigada, Manuel João.

MJC disse...


Obrigado nós Teresa e venha, venha sempre que nós gostamos. Muito.

Um abraço.

Manuel João

antonio alfacinha disse...

Belo pela simplicidade, pela vivência e pela harmonia de um compasso de vida igual a tantos outros. Grato pela partilha.