Os Jogadores de Cartas, Cézanne, 1890 Óleo sobre Tela, 45x57cm |
ROTINA DE UM HOMEM VELHO
Raramente falava com palavras… mas eram repletos os seus silêncios. E todos nós sabíamos o significado de cada um deles.
De manhã, o primeiro silêncio. Quieto. Um comprimido em jejum e um outro que desde novo tinha que tomar para toda a vida.
A seguir, um silêncio com gestos calculados acompanhava-lhe o café com leite e o pão macio. No fim, o comprimido das dores, que nem aquecia nem arrefecia, mas que com a idade dele mal não havia de fazer…
Eram assim os seus primeiros silêncios do dia.
Sabiam-se entendidos e permaneciam enquanto a vida era já quase toda.
Todos os dias, às quatro da tarde, ele, o Dr. Veiga, o Paulo da Fazenda e o Zé das Figueiras encontravam-se no café. Chegavam exatos, de muitas horas iguais. Não falavam com palavras… mas eram fartos os seus silêncios. Jogavam uma partida de dominó e apenas ele sorria ao ganhar. Os outros arrumavam as peças.
Às quatro e meia ia lanchar. Todos ali sabiam as horas. Era o tempo escancarado da rotina precisa de um homem velho. De uma vida feita cada vez mais. Já quase toda.
Os miúdos corriam por ali.
E um novo silêncio buscava num olhar longe o sossego de outro tempo. Era de novo ele e os miúdos brincavam fora para não incomodarem o paizinho.
Súbito, um silêncio gelado de morte e de ausência. Fazia-lhe tanta falta…
Uma lágrima resignava-se na memória certa e sem futuro ignorado. Conhecia-se assim, inevitável.
Pesavam-lhe os silêncios quando a vida se chegava e sobravam-lhe as palavras. Por isso, nunca dizia nada. Nos seus olhos, uma quietude intencional.
A sopa de ovo. O pão migado. Um pouco de azeite em cru e uma pitadinha de sal.
Comia vagarosamente e apenas se sentia o barulho metálico da colher, batendo ritmadamente no prato.
Acabada a refeição da noite, tirava a loiça e dobrava cuidadosamente a toalha. À sexta era o dia de a colocar para lavar. Nos outros dias, seguiam-se as notícias na televisão.
O comprimido adormecia-lhe então a certeza do fim e fechava-lhe os silêncios do dia.
Quando a vida se fez toda nele, em mim restou a pena de um gesto perdido. Talvez uma carícia…
Porque o tempo é sempre rápido demais.
E o
silêncio, esse, é certo.
Maria Teresa Bondoso
4 comentários:
Para quê mais palavras se elas estão todos aqui?
Nem mais, nem menos, justamente as necessárias para permitirem em nós o silêncio que possibilita a audição perfeita.
E no percurso entre a palavra proferida e a calma calada do depois sobe-se mais um degrau de sabedoria.
E é esteticamente perfeita e bela que que se nos apresenta sorrindo e nós, claro, sorrimos também.
A "moldura" mais uma vez é, também, perfeita.
Permitam pois o envio deste abraço. Grande e, em silêncio.
Manuel João Croca
Obrigada, Manuel João.
Obrigado nós Teresa e venha, venha sempre que nós gostamos. Muito.
Um abraço.
Manuel João
Belo pela simplicidade, pela vivência e pela harmonia de um compasso de vida igual a tantos outros. Grato pela partilha.
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