A CONSCIÊNCIA
Abdul Cadre
A
ciência, aquela abstracção a que chamamos ciência real ou concreta, é sempre
como aquelas casas para cuja ampliação se aproveita cantaria de outras.
Agostinho da Silva
Vendas Novas, 06 JAN 2015
Há
conceitos que se usam com o maior dos à-vontades como se fosse pacífica a sua
invocação e unívoco o seu entendimento. Tal é o caso, entre muitos outros, de
«consciência». Afinal, quando dela falamos, de que falamos verdadeiramente?
Elaborados
ou não, vários são os entendimentos. Por exemplo, confunde-se bastas vezes
carácter com consciência quando, se atentarmos bem, o primeiro refere-se à
disposição habitual e à reposta comportamental típica consequente ao
temperamento e à sensibilidade, enquanto a última é aceite geralmente como
significando a percepção do dever, o sentido do bem e do mal.
Mas
temos mais.
Perante
um acto impensado e perigoso, diz um amigo ao outro: és um inconsciente;
daquele que trabalha com muito esmero e responsabilidade, diz-se que é um
trabalhador muito consciente; da vítima gravemente ferida num acidente de
automóvel poderá dizer-se: está ainda encarcerado, mas perfeitamente
consciente...
Em
português, consciente tanto pode querer dizer «que sabe que existe»
(autoconsciência), como «que sabe o que faz», que é cônscio, sabedor, ciente. É
o «concienzudo» castelhano, que se pode traduzir por cuidadoso. E vale a pena
lembrar que na língua castelhana, que muitos chamam língua espanhola, temos o
termo «conciencia», que é a consciência conotada com a moral e o termo
«consciência», que significa conhecimento. O interessante, como curiosidade
divertida, é que muitos portugueses, conhecendo ou não o castelhano, em vez de
pronunciarem consciência, pronunciam erradamente conciência, que é um termo que
a língua portuguesa não regista nem está previsto nas tropelias da aberração
conhecida como «acordo ortográfico».
É
evidente que a polissemia do termo pode confundir a conversa e obnubilar o
entendimento, e do que queremos falar é de consciência em sentido mais restrito
do que o corrente mas de modo algum tão restrito que fique subsumido ao sistema
individual de valores morais, ao certo e ao errado da conduta, sem prejuízo, no
entanto, de querermos privilegiar a vertente metafísica do assunto, mas sem
descurar os importantes e significativos aportes dos grandes investigadores da
ciência académica da Psicologia.
Queremos
também que não se confunda mente com consciência e se aceite que cada ser
humano, sendo uma unidade de consciência, transporta em si, em cada célula, em
cada órgão, unidades escalonadas dessa mesma consciência.
Para
a ciência moderna, mente e consciência são produtos da actividade cerebral.
Platão e Descartes não entendiam assim, defendiam mente e cérebro como
entidades separadas. Se nos perguntamos se são os acontecimentos baseados no
cérebro que causam a experiência consciente ou se é a experiência consciente
que causa mudanças no cérebro, não raro somos empurrados para a velha história
do ovo e da galinha. Entendemos perfeitamente que a ciência se preocupe apenas
com o que ode pesar e medir e que reduza a consciência à electroquímica, às
ondas e às localizações cerebrais. No nosso entendimento, que não é científico,
tudo isso nos parece pouco, porque é apenas a parte visível (digamos assim) de
um imenso iceberg; é a redução da consciência aos fenómenos do comportamento,
da atenção e da percepção. Todavia, por mais que seja um handy cap não sermos
cientista, e sem carregar excessivamente na perspectiva metafísica, diríamos que
a consciência individual – o eu – é um processo potenciado pela consciência
humana global, sendo esta infundida pela consciência cósmica que emerge da
mente total e absoluta, que muitos designam por Deus. Como energia subtil, é
universal; como função, é critério nos humanos e instinto de sobrevivência nos
animais e no que em nós há de animal.
Eis
então que a nossa assim delimitada consciência constitui um processo mental,
certamente com implicações fisiológicas, mas não apenas, não meramente um
processo fisiológico. Do nosso ponto de vista, não é um produto do cérebro,
sendo que este é, sobretudo, um interface entre o soma e a psique. Veja-se, por
exemplo, que as amibas não têm cérebro e todavia têm consciência, não ao nosso
jeito, como é evidente, mas ao jeito delas.
É
nossa convicção que não foi o cérebro que inventou o pensamento, mas que foi o
pensamento puro – que é uma potência cósmica – que infundiu e desenvolveu essa
estrutura em nós. A nossa mente é o reflexo em nós da mente cósmica, o que
implica entendermos que tudo é mente, que o universo é mental. É por isso que a
nossa mente (individualmente considerada) não é tão independente quanto
comummente se julga, pois está mergulhada no mar imenso da mente humana
colectiva de hoje e de ontem e nem sequer está apartada da sua infusão nos
reinos vegetal e animal, dado sermos um com todos os seres.
Do
ponto de vista esotérico, a mente é parte da alma e da personalidade,
ressalvando-se desde já que a utilização destes termos e destes conceitos é
tudo menos pacífica.
Também
não será pacífico dizer-se que a razão, a intuição, a emoção, a imaginação, a
criatividade e a erudição, por exemplo, são produtos básicos da mente. Assim
sendo, então a consciência humana identifica-se claramente com este compósito,
susceptível de conduzir quer à sabedoria, quer à santidade, ou ao contrário de
uma e outra coisa, por inversão de polaridades.
Conclua-se
então que os nossos órgãos físicos são estruturas desenvolvidas pelas
necessidades funcionais, porque é a função que determina o órgão, não é o órgão
que inventa a função.
Não
foi a caneta que inventou o escritor, pois não?
Para
interpretar o mundo terrestre e nele agir adequadamente, desenvolvemos os
sentidos físicos que tal possibilitaram: cinco virados para o exterior e vários
outros (virados para dentro), tendentes à protecção e conservação do corpo.
Estes sentidos são assim faculdades objectivas ao serviço das nossas faculdades
subjectivas, mormente da capacidade reflexiva.
Dando
tudo isto como bom, facilmente entenderemos que a vida é a grande função de que
o nosso soma é a estrutura global da nossa acção mundana, o nosso grande
veículo neste plano de manifestação. Nesta estrutura, os sentidos (os órgãos
dos sentidos) permitem-nos – permitem a todos os seres vivos – reagir no seio
da nossa circunstância. Pela razão, – e a razão, como atrás dissemos, é um
produto da mente – a nossa reacção torna-se racional e inteligente; a
consciência, através dos sentidos, faz de nós seres sensíveis.
Todas
as células do nosso corpo estão impregnadas de consciência, toda a nossa
bioenergia a reflecte, porque, sendo um produto da alma, age sobre todo o ser e
sobre todos os seres.
Então,
está errada a ciência?
É
evidente que não. Ela apenas se ocupa do que deseja ocupar-se e a metafísica
não lhe diz respeito. Da consciência estuda a parte objectivamente constatável,
os fenómenos que resultam da percepção, da memória, da razão, da inteligência
funcional, do básico, digamos assim, daquilo a que os metafísicos chamam
actividades da consciência objectiva, sejam elas automáticas ou voluntárias. O
mais longe que a ciência académica se atreveu, aliás com bastante relutância,
prende-se com as propostas despoletadas por Freud e por Jung, nomeadamente com
a introdução do conceito de inconsciente, que é algo que afinal não se mede e
nunca foi localizado, seja no cérebro, seja em qualquer outro lugar físico, o
que constitui, naturalmente, uma grande contrariedade.
Como
diria Schiller, a percepção sensorial e a autoconsciência manifestam-se
independentemente da nossa própria vontade e do nosso conhecimento. E ainda
bem, acrescentaríamos nós, para nossa segurança e comodidade. Todavia, sem a
vontade, que é a consciência em acto, e sem o conhecimento, que é sobretudo
evocar e relacionar campo da memória, não nos distinguiríamos dos animais tanto
quanto nos distinguimos, ou nos julgamos distinguir.
Os
automatismos inscritos na nossa consciência objectiva, actuando através do
nosso sistema nervoso, dos nossos sentidos e coordenados pelo nosso cérebro,
automatismos a que poderíamos chamar pré-consciência, ou consciência elementar,
podem e devem ser condicionados pela vontade e pelo propósito, pois que o
descontrolo desta consciência elementar constitui uma alienação e, sob o ponto
de vista dos costumes, leva à corrosão dos critérios do bem, do belo e do
justo; sob o ponto de vista da sanidade física e mental, conduz à neurose e
mesmo à loucura.
Para
finalizar, por mais redundantes que possamos ser nesta exposição, julgamos que
o que importa reter é que a consciência humana – colectiva ou individual – é um
reflexo (uma infusão) da consciência cósmica global, não reside no cérebro,
contrariamente ao entendimento maioritário dos cientistas. Ela é um atributo da
Alma, agindo nas dimensões corpóreas e incorpóreas do ser humano, utilizando o
corpo físico por inteiro e não apenas o cérebro, embora este tenha privilégios
de comando e coordenação.
O
cérebro é, com certeza, uma grande obra da nossa evolução; enorme, porém, é a
função que o determinou e requer.
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