por Miguel Real
HOMENAGEM A FERNÃO MENDES PINTO
NOS 400 ANOS DA PUBLICAÇÃO DE “PEREGRINAÇÃO”
INTERPRETAÇÕES DE PEREGRINAÇÃO:
João David Pinto Correia, António José Saraiva e Rebecca Catz
João
David Pinto Correia, num brilhante texto que opera a convergência de diversas leituras
de Peregrinação, de Fernão Mendes
Pinto, apresenta esta obra como uma “tessitura textual muito complexa”, uma
sorte de “confluência de várias espécies de discursos que se cruzam e se fundem
numa vasta ordenação” dominada pelas categorias de “discurso narrativo” e
discurso “autobiográfico”[1].
Neste
sentido, e tendo em conta a dominância daqueles dois tipos de discurso,
evidenciar-se-ia no texto de Fernão Mendes Pinto uma espécie de síntese de
múltiplas categorias discursivas, do cruzamento e fusão das quais nasce
justamente o texto literário: o discurso histórico ou historiográfico, o
descritivo, o oratório, o dramático, o poético, de timbre lírico, o litúrgico e
o epistolar[2].
Assim,
enquanto texto autobiográfico e narrativo e devido ao seu tema principal (a
vida do autor-narrador nas longínquas paragens do Extremo Oriente), Peregrinação entronca no vasto acervo da
Literatura de Viagem escrita no século XVI: “um itinerário, ou uma relação de
viagem, em que se apontaria, etapa por etapa, o conhecimento de lugares e
populações” estranhas à mentalidade europeia[3],
cujo título indicia uma espécie de provação existencial individual por terras
incógnitas e exóticas de um “pecador peregrino”, uma sorte de “romagem de
devoção”, na qual e pela qual o sofrimento vivido limparia os erros e pecados
do autor-narrador[4].
Deste
modo, João David Pinto Correia chama a atenção para o facto de Peregrinação não se constituir apenas
como uma enumeração de factos (reais ou ficcionais), mas de apresentar
igualmente “marcas de literariedade”[5]
que testemunham estarmos de facto perante uma obra literária, apresentando “uma
tensão entre um discurso coloquial (…) sem grandes pretensões estéticas, por um
lado, e, por outro, um discurso literário, já narrativamente adequado ao suspense da narrativa e ao exotismo das
descrições, já poeticamente organizado, de um barroquismo metafórico, ou então
obediente aos cânones literários do classicismo”[6].
António
José Saraiva, na introdução que escreveu para a edição de Peregrinação em quatro volumes da Editora Sá da Costa em 1961[7],
realça ser o herói da narrativa um anti-herói ou um herói pícaro de timbre
positivo, já que, com os lamentos do “coitado de mim”, suscitando o espírito
sarcástico, coexistem “lágrimas e enternecimentos”[8]. Peregrinação estatuir-se-ia, assim, como
expressão do esboroamento social e da decadência histórica da mentalidade
feudal senhorial e cavaleiresca, activados por grupos soltos de mercadores
portugueses não controlados pelo vice-reinado da Índia, mercadores que actuavam
com o fito exclusivo de enriquecimento.
Segundo
António José Saraiva, o autor, enquanto herói do seu livro, “tem a franqueza de
nos declarar que a sua única preocupação é fazer fortuna. Conta as suas
necessidades, misérias, fugas e os seus ataques de medo: «as carnes
tremiam-me», diz frequentemente. Para salvar a vida é capaz não só de fugir,
mas até de se rojar no pó, de caluniar o amigo, de beijar os pés do assassino”[9];
“desta forma, o herói principal de Peregrinação,
como escravo, como miserável, como bobo, oferece-se ao riso dos leitores. É
justamente um anti-herói, irmão de Sancho Pança. Não tem sombra de orgulho, de
brio, de preceito. A noção de «honra» é-lhe inteiramente desconhecida.
Dir-se-ia que o nosso Fernão Mendes Pinto quis apresentar o contraste, o avesso
dos heróis empertigados de Camões e João de Barros, Este carácter do herói
central é, porventura, a chave [de leitura] de Peregrinação e explica-nos numerosos episódios deste livro que de
outra forma são incompreensíveis”[10].
Rebecca
Catz, embora concorde quanto à natureza satírica de Peregrinação, tem, porém, sobre este livro, uma leitura muito
diferenciada da de António José Saraiva.
Com
efeito, esta autora critica de um modo muito sólido a vertente picaresca
atribuída por António José Saraiva ao livro de Fernão Mendes Pinto, já que o
facto de um texto ser autobiográfico, desenhar uma espécie de anti-herói,
evidenciar episódios de miséria social e de cinismo narrativo não caracteriza
necessariamente o texto de pícaro[11],
embora seja comum à maioria dos textos satíricos.
Concordando
que Peregrinação possui elementos
pícaros avulsos, ou episódios em que o pícaro é dominante, a autora entende que
o discurso dominante no texto possui as características da sátira. Escreve
Rebecca Catz: “Sátira é, quanto a nós, retórica moral, e o seu propósito o de
reformar [a sociedade, os costumes]. Ao mesmo tempo que critica males
[descrevendo-os, narrando-os de um modo exemplar], estabelece o modelo positivo
e aponta inexoravelmente o caminho para normas de moral elevada”[12].
E acrescenta, na Peregrinação “anda o
diabo à solta; mas trata-se de um universo [social e literário] em que crime é
um pecado contra Deus e o pecador ou se arrepende ou tem de responder perante
Ele. Isto é, em nosso entender, o que o afasta do picaresco, um género
literário isento de qualquer padrão moral normativo”[13].
Rebecca
Catz critica igualmente a teoria sócio económica de António José Saraiva
relativa à origem histórica do pícaro como “filho de uma ordem social
agonizante, nutrido no solo espanhol, onde as suas energias [de origem
cavaleiresca, fidalga, senhorial] se viam restringidas pelos valores de um
sistema feudal já ultrapassado”[14],
mormente transplantado para o ambiente social exógeno da Índia portuguesa e do
Extremo Oriente. A autora considera forçada a extrapolação ou transplantação do
pícaro, de origem eminentemente espanhola, para terras, ambientes e costumes
radicalmente diferentes.
Em
“Para uma compreensão de Peregrinação”
(1989), Rebecca Catz regista ser este texto “uma obra de profunda filosofia
moral e religiosa. A tese da obra, expressa simplesmente, é o pecado e o
castigo. O impulso satírico que está nela patente é dirigido contra a ideologia
de cruzada, que foi a maior força unificadora da história de Portugal. É isso,
precisamente, que separa Fernão Mendes Pinto dos seus contemporâneos – porque
só ele, no desabrochar da era do imperialismo europeu, teve a grande coragem, o
discernimento e a perspicácia de pôr em dúvida a moralidade das conquistas
ultramarinas, as quais condena como actos de bárbara pirataria, em ofensa a
Deus”[15].
Por
via do conceito retórico de “persona” (capacidade pela qual o autor literal ou
histórico assume diversas vozes e/ou personagens), Rebecca Catz suplanta a
visão picaresca de Peregrinação de
António José Saraiva.
Assim,
por via deste conceito, o autor-narrador do livro assume uma quádrupla
dimensão:
a. –
a de voz moral, homem basicamente virtuoso e generoso;
b. –
a de voz ingénua, como ser inocente, de coração simples, que suscita piedade;
c. –
a de voz heróica, capaz de desafiar e vencer o mal;
d. –
finalmente, a de voz pícara, a “que revela a tolice e a patifaria dos outros
dissimulando uma aprovação, pela
participação nele, do mal que deseja
condenar”[16].
Miguel
Real,
31
de Dezembro de 2014
[1] João David Pinto Correia, Autobiografia e Aventura na Literatura de
Viagens. A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, Seara
Nova / Editorial Comunicação, 1979, p. 51.
[2] Idem, ibidem, pp. 53 – 54.
[3] Idem, ibidem, p. 26
[4] Idem, ibidem, p. 25.
[5] Idem, ibidem, p. 77.
[6] Idem, ibidem, p. 77. (FALTA MARIA ALZIRA SEIXO)
[7] Cf. igualmente António José
Saraiva, “Fernão Mendes Pinto e o romance picaresco”, in Para a História da Cultura em Portugal [1961], Lisboa, Europa –
América, 1972, 3ª edição, pp. 117 – 136.
[8] António José Saraiva, “Prefácio”
a Fernão Mendes Ponto, Peregrinação e
Outras Obras, Lisboa, Sá da Costa, 1961, 1º vol., p. XLIV.
[9] Idem, ibidem, pp. XXII – XXIII.
[10] Idem, ibidem, p. XXVI.
[11] Rebecca Catz, A Sátira Social de Fernão Mendes Pinto.
Análise Crítica de Peregrinação, Lisboa Prelo Editora, 1978, pp. 94 – 95.
[12] Idem, ibidem, p. 95.
[13] Idem, ibidem, p. 15.
[14] Idem, ibidem, p. 95.
[15] Rebecca Catz, “Para uma
compreensão de Peregrinação”, in
Fernão Mendes Pinto, Peregrinação & Cartas,
Lisboa, Edições Afrodite, 1989, p. 1033.
[16] Idem, ibidem, p. 1033.
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