sábado, 15 de agosto de 2015

Etnografar a Arte de Rua (XII) Graffitar a Literatura



Graffiti fotografado por Luís Souta, 2015.
Largo da Lota, traseiras do mercado de Cascais


«As utopias são realizáveis.»
(Nicolas Berdiaeff, epígrafe do livro Admirável Mundo Novo)


A 2ª edição do “Muraliza - Festival de Arte Mural”, de Cascais, para além de 5 novos murais possibilitou a recuperação de 6 portas. Esta é uma delas, da autoria do português Belém. Um graffiti que nos reporta à afamada obra do inglês Aldous Huxley (1894-1963), Admirável Mundo Novo. Li este romance futurista (de 1931 que nos leva para uma época seiscentos anos à frente) numa tradução (documentada) do escritor e pintor surrealista Mário Henrique Leiria (1923-1980) que, na nota de abertura, reconhece a «complexa linguagem [shakespeariana] de Huxley». O autor deste graffiti optou pelo uso de extractos em inglês. Compreende-se. Numa vila virada para o turismo, o estrangeiro acaba por se tornar o destinatário privilegiado… também da arte de rua. E aqui até se pode argumentar com o recurso à fonte original.
Admirável Mundo Novo, apesar de ser uma obra de juventude e escrita em poucos meses, acabou por se tornar na mais marcante e conhecida de Huxley. Uma «sátira à sociedade industrializada» que reflecte os medos da biociência e da máquina colocadas ao serviço do autoritarismo de estado. Num prefácio à edição de 1946, Aldous Huxley escreveu: «Um estado totalitário verdadeiramente “eficiente” será aquele em que o todo-poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de directores terá o controle de uma população de escravos que será inútil constranger, pois todos eles terão amor à sua servidão. Fazer que eles a amem, tal será a tarefa, atribuída nos estados totalitários de hoje aos ministérios da propaganda, aos redactores-chefes dos jornais e aos mestres-escolas.»
Lenina Crowe, Bernard Marx, Polly Trotsky são três personagens cujos nomes nos remetem para uma associação imediata a três personalidades históricas do marxismo-leninismo e da revolução soviética de 1917. O graffiti de Belém coloca Lenina (?) de canastra à cabeça e numa pequena embarcação, ambas pejadas de cápsulas, «o ‘soma’, a pílula da felicidade, a droga sedativa da civilização, a âncora a que todos se agarram quando querem esquecer os problemas» (como escreveu Raquel Ribeiro numa recensão no jornal Público). Huxley era um defensor do uso dos psicoativos (como o LSD) e redigiu, em 1954, um ensaio – The Doors of Perception – que exerceria certa influência sobre a cultura hippy e esteve, por exemplo, na origem do nome da banda The Doors, liderada por Jim Morisson.
Todas as obras de ficção (científica) antecipam de alguma forma o futuro. Mas essa previsão é sempre arriscada e falível, e como em todas as outras, também o Admirável Mundo Novo não conseguiu prever o que, no curto prazo (14 anos depois), haveria de mudar o rumo da guerra (e da vida): a cisão nuclear. Os efeitos nefastos das drogas só viriam a ser conhecidos, na sua profunda dimensão, bem mais tarde. O desejo, em particular dos jovens, de “quererem sentir algo de forte” acaba por os aprisionar na toxicodependência e disso se aproveita o poder do estado para anestesiar e alienar os verdadeiros “exércitos” capazes de o derrubar – a juventude. Ela é que mais questiona o status quo, social e político. Soubessem eles ter a coragem e ousadia do Selvagem, trazido do Novo México, de recusar esse (falso) admirável mundo novo…

Luís Souta

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