sábado, 29 de agosto de 2015

Relatos da Vida de Um Médico


O ANEL
Empurrei a pequena porta da cerca, que dava acesso ao quintal daquela pequena casa lá no campo. Até lá chegar percorri um longo caminho de areia. Um hábito naquela zona onde exercia. A porta abriu-se e surgiu uma senhora de estatura pequena, olhos sofridos, com as mãos em sinal de prece, como que aguardando um deus esperado para resolver a situação. A humilde casa permitia-me uma situação de bem estar, quase que uma quaisquer necessidade de refúgio por mim sentida, em relação à agressividade que é própria nos dias de hoje. Dois passos foram suficientes para passar a cozinha, onde um pequeno prato tinha os restos de uma torrada não digerida. Ao lado um pequeno cesto com os ovos do dia, cobertos da sujidade, que não o era, e indicava a presença de galinhas no quintal.
E eis-me no quarto. Na cama um senhor que depois soube chamar-se João, com oitenta primaveras. Fácies magra,que depois continuou em todo o corpo.
A primeira frase que me disse e que permanecerão para sempre no meu registo:
- Senhor doutor, doem-me os tomatinhos.
Um tumor da próstata já em fase muito adiantada. As dores horríveis.
É nestas situações que sentimos a nossa vulnerabilidade e impotência. Fiz o que me era possível, amenizar ao máximo o seu sofrimento. De médico, a amigo e ouvinte foi um passo e a minha missão nas múltiplas visitas que fiz àquela casa. Pouco tempo depois a partida que tardava.
De vez em quando a dona Maria, agora toda vestida de preto chamava-me. E eu já sabia, guardava aquela visita para a ultima do dia, pois o que me esperava era uma amiga que precisava da companhia de um familiar, que não havia, tinham percorrido a vida só os dois, sem descendentes ou colaterais. Assim assumi mais esse papel. À noite lá vinha eu para casa com os ovos do dia e mais algum produto da horta do quintal se houvesse. Os anos foram passando e um dia a dona Maria chamou-me mais uma vez. Recordo a cena desse dia.
A noite já tinha chegado e fez-me sentar em cadeira de palha, dirigiu-se à cómoda e tirou de dentro da gaveta uma pequena caixa de madeira. Abriu e tirou lá de dentro um anel, o do marido, de casamento. Pediu-me que aceitasse pois sentia que em breve iria ter com o senhor João, pois às vezes já o ouvia chamar . Colocou-me num dilema. É que eu nunca aceitei quaisquer oferta de bens pessoais, nem a lei me permitia. Mas aquele olhar da amiga Maria, que em quase súplica me pedia que eu aceitasse o que restava do sr. João, fez-me mandar às urtigas a lei e os meus preconceitos. Agora está lá na gaveta da nossa cómoda aguardando que um dia mude de mãos. Mas quem o levar tem que saber a história do sr. João e o sofrimento pelos seus tomatinhos.

António Alfacinha

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