Francisco Gomes Amorim
A entrevista que se segue foi publicada num jornal do sul da Austrália, há cerca de seis meses, que reproduzimos sem ter pedido autorização.
A um português que para ali foi quando saiu das colónias em 1973, pressentido já que tudo ia acabar mal.
Agora na faixa dos oitenta anos, começou por lembrar à entrevistadora, Monique Johnston, que não tinha sido colono, não ocupou terras, não foi funcionário público, não fez a chamada guerra colonial, limitou-se a viver em África, com a família, por mais de vinte anos, trabalhando em indústrias. Teve quatro filhos, uma casada com um australiano, e três homens, um vive perto dele em Melbourne, um no Brasil e outro nos Estados Unidos.
A vida correu-lhe bem e hoje, aposentado, viaja através do mundo para estar com os filhos, quando aproveita para tentar entender a razão dos conflitos a que está constantemente a assistir.
Engenheiro, sempre se interessou pelas relações com o pessoal seu subordinado, e sobretudo pelos problemas de “raça”, que desde África lhe parecia, pensava, ter compreendido como conviver.
A entrevistadora não indicou o nome dele, distingui-o somente com duas letras VA, que explica assim: “Vim de África”!
MJ (Monique Johnston) – Como já falámos, o nosso tema para a conversa é o racismo. Pode começar por contar-nos um pouco como foi o começo do seu contato com os africanos?
VA – Não posso dizer que tenha sido uma surpresa, porque desde sempre, até em Portugal onde nasci e de onde saí, sempre houve escalões nas sociedades. Sobretudo nas cidades principais esses escalões eram definidos pelo poder económico das pessoas, como o casamento entre os descendentes de grandes fortunas, pela classe média alta, os trabalhadores braçais ou operários, etc. De uma forma geral estes grupos eram e são, relativamente fechados.
Em África havia algo semelhante: os quadros superiores das empresas, os conterrâneos emigrantes, a classe média operária de origem europeia e os africanos. Não que isto envolvesse exatamente um racismo, mas do mesmo modo que um diretor de empresa, em qualquer lugar da Europa, América ou aqui, não convida para jantares em sua casa os operários mais simples da sua empresa, a convivência com os africanos mais simples era semelhante.
MJ – Então o contato com os nativos era só formal?
VA – Nem pensar. Havia muitos com educação e cultura que eram recebidos em nossas casas. Penso ainda muito em alguns padres, de pele muito escura que eram nossas visitas habituais, e com quem nos dávamos muito bem. Além disso havia uma classe, importante, de mestiços, em ocupações de destaque tanto na administração pública quando privada.
Eu mesmo tive um chefe de secretaria, mestiço, que muita vez esteve em minha casa. Não era um amigo, mas volta e meia aparecia e bebíamos uma cerveja juntos.
MJ – Mas havia algum racismo, porque até hoje os africanos falam nisso, ou acha que não?
VA – Evidente que havia, mas foi sobretudo um racismo criado pelo sistema colonial, pelos governos das metrópoles, que ao pretenderem manter essas populações com o mais baixo nível possível, imaginavam que assim lhes causariam menos problemas e teriam um custo de trabalho mais baixo quando não... quase escravo. Além disso mesmo em Portugal, a política durante mais de meio século, era igual. E também, como em todo o lado, havia muito colono, bruto, inculto, que tratava mal o pessoal. E isso tem uma explicação simples: o medo!
MJ – Alguma vez o senhor se sentiu ameaçado por ser branco?
VA – Nunca. E olhe que percorri o interior de vários países, muitas vezes sozinho no meu carro. E regra geral era muito bem acolhido pelos camponeses, a quem até hoje estou reconhecido.
MJ – E os mestiços, como reagiam?
VA – O problema maior, e vou-me referir só a Angola e Moçambique começa com a República, em Portugal em 1910. Com uma ganância imensa, o governo central de Portugal, decidiu começar a substituir, em lugares de destaque na função pública, como Fazenda e Administração do Território, pessoas das famílias tradicionais, quase todas mestiças, por funcionários mandados de Lisboa. Isso teve várias consequências graves: por um lado, uma sensação de abandono dos angolanos natos, e por outro um quase incentivo à corrupção e aumento de desentendimento entre uns e outros que culmina, já nos anos 50, com os quadros de todos os “matizes” de pele a se rebelarem contra o governo central e daí a luta pela independência.
MJ – A história relata constantes lutas entre os nativos e os, chamemos-lhes, invasores. Como foi?
VA – É uma falácia dizer que Portugal “ocupou” as antigas colónias africanas durante 500 anos! Pior ainda quando diz que as colonizou. É verdade que logo de início os contatos tinham como objetivo o comércio e a cristianização. Mas logo situações complicadas obrigaram a tomar partido em lutas internas e a partir daí começam a querer “governar” as populações, que nunca aceitaram! Lutas, guerras que, essas sim, duraram 500 anos! Sobretudo em Angola e Moçambique.
Sacrificaram-se milhares e milhares de vidas, de parte a parte, atrás de quimeras como a prata em Angola e o ouro em Moçambique!
MJ – E durante a guerra colonial como era o contato com os nativos?
VA – Nalguns lugares era perigoso, até mesmo inviável entrar nalgumas zonas, mas na maioria dos territórios os povos sabia que não era contra os portugueses que lutavam, mas contra o sistema colonial.
MJ – Voltemos ao racismo. Os africanos ainda olham para os portugueses com maus olhos?
VA – Por muito incrível que pareça, o que se tem visto é que preferem ter lá portugueses do que indivíduos de qualquer outro país! Nós não os segregávamos por serem desta ou daquela cor de pele, enquanto que, por exemplo, ingleses, altamente esnobes, os tratavam como seres inferiores. Desprezavam-nos. Veja o que se passou por exemplo aqui na Austrália onde os governos chegaram a retirar crianças aborígenes de suas famílias, para os criarem longe das suas raízes, como fizeram até há bem pouco tempo, também no Canadá.
A propriedade das terras tradicionais (chamadas native title) não era reconhecida até 1992, os aborígenes continuam com taxas superiores à média de prisão e desemprego, além de baixos níveis de escolaridade e expectativa de vida.
Nos Estados Unidos os “pilgrims” começaram por caçar nativos como quem caçava bisontes, e ainda hoje a segregação é vergonhosa, para com os índios, latinos e sobretudo os chamados, eufemisticamente afro-descendentes.
MJ – A que o senhor atribui essa diferença entre portugueses e ingleses?
VA – Ao modo como cada um interpretou o cristianismo! Os católicos, complacentes, condenando o lucro desmedido, começaram por tratar os chefes africanos como reis, irmãos do rei de Portugal, a quem este enviava oferendas e, à moda da época, dava títulos de nobreza aos familiares! Inúteis os títulos, eram uma deferência, e mas ninguém mais fez isso. Talvez tivesse achado inútil ou grotesco, mas de qualquer modo era uma distinção.
Os ingleses, puritanos ou calvinistas, visavam o lucro e a total independência do rei de Inglaterra. As leis foram eles que as fizeram a seu bel-prazer nas novas colônias, tanto nos Estados Unidos quanto aqui, sem se importarem com qualquer um que fosse o Outro.
Os portugueses podem ter cometido, e cometeram, muitos erros, mas tinham que prestar contas ao rei, e muitos governadores foram punidos e até enviados sob prisão para Portugal.
MJ – Segundo a sua visão do problema, como imagina que se pode acabar com o racismo?
VA – Essa é pergunta mais difícil que tive que encarar toda a vida! Mesmo quando tinha que resolver problemas de engenharia complicados, nada se compara com isso! Mas vamos lá.
Em primeiro lugar está a educação. Se não se der a mesma oportunidade de educação a todos haverá eternamente os eleitos e os outros, os sub qualquer coisa.
Depois uma legislação e um sistema jurídico de completa isenção, que é o que hoje, nos Estados Unidos estamos a ver que não existe! Lá é muito difícil para um juiz, ou para os jurados, condenarem policiais. Há um medo imenso em retaliações, sobretudo nas pequenas cidades do interior. Em cidades dominadas pelos tais afro descendentes, ricos, com o mayor e a polícia toda com gente de sangue africano, parece que ainda é mais difícil, mesmo que o réu seja da mesma cor.
O sonho americano é enriquecer. Atropelar o Outro se necessário. Criar seitas tipo KKK e leis como a de Linch que continua a vigorar desde 1837. Mas nada que atrapalhe o tal Sonho que tende a desmoronar.
Veja o que se passa na política: implantar por exemplo o programa de saúde para todos como quis o Obama, não é possível. Cheira-lhes a socialismo e isso é pior do que dor de dentes!
Socialismo para os americanos significa reduzir-lhes a perspectiva de ganhos para os distribuir a quem ganha menos! E em se tratando de brancos e negros...
MJ – E no Brasil?
VA – O problema do Brasil é a série de governos incapazes que, à moda soviética, querem impor o “politicamente correto”, e têm criado problemas nas relações entre as pessoas. Ao mesmo tempo é a imensa falta de educação e cultura, a todos os níveis, mas sobretudo no ensino primário.
Além disso o caso dos bairros miseráveis, as favelas, onde vive a maioria da população pobre nas cidades, lugares dominados pelo tráfico de drogas, e onde há, praticamente todos os dias, tiroteio entre traficantes e polícia. O Brasil há já mais de dez anos que contabiliza cerca de 50.000 assassinatos por ano! É o único país do mundo onde isso acontece.
O que lhe vale são os estupendos jogadores de futebol, ídolos, na sua maioria negros ou mestiços.
MJ – A mídia de todo o mundo diz que é perigoso ir ao Brasil. Porque?
VA – A estatística! 50.000 assassinatos por ano é pior do que a guerra no Média Oriente! Mas há dois anos ninguém, mundo fora, falava nisso. Agora é manchete.
Qualquer pessoa pode, à vontade, entrar num bar dessas áreas dos subúrbios, beber um café ou uma cerveja, sem que seja minimamente incomodado. O que não pode é meter-se entre a guerra do tráfico com a polícia!
MJ – O senhor tem um filho no Brasil. Como ele encara a vida nesse ambiente?
VA – Ele está lá há quase trinta anos. Casou com uma brasileira, tem três filhos já na universidade, e nunca teve problemas, nem com polícias nem com marginais. Mas, como é de supor toma as suas cautelas. Não se pode dizer que seja um país de segurança total, mas não é preciso fugir de lá!
MJ – Acho que temos que fazer uma breve síntese desta conversa. Com o senhor resumiria o problema do racismo? O que é necessário que se faça?
VA – Educação, desde o berço, cultura e justiça. Igual para todos.
14/01/2016