por PEDRO MARTINS
Que a educação de uma geração se deduz das opções filosóficas, já o sabiam, há um século, os homens da Renascença Portuguesa, matriz de onde emerge o vulto de Agostinho da Silva. De modo parecido, a adopção, filosoficamente motivada, de determinada orientação pedagógica e didáctica projecta-se, nas gerações seguintes, no curso da vida política.
A tese de doutoramento em
Filosofia da Educação que Luís Carlos dos Santos (LCS) acaba de dar à estampa na
Euedito versa essencialmente a primeira daquelas relações condicionantes no
pensamento e na obra do autor de Considerações.
Sendo certo que, para
Agostinho, a filosofia é ancilar da teologia, entendeu o autor deste estudo alargar-lhe
o âmbito ao domínio, mais vasto, da espiritualidade, evitando assim restringir-se
à religião. Justifica-o o ecumenismo agostiniano, na sua pretensão de abarcar e
abraçar tradições como o budismo, onde a ausência de Deus pode levar a
questionar se se trata ainda de uma religião, ou correntes como o materialismo
ateu, e aqui lembrarei, com António Quadros, o mistério metafísico do poder
demiúrgico que o marxismo atribui à Matéria, essa Deusa Mãe.
Lucidamente, acentua o autor a
ideia de Deus como a pedra de toque e de fecho do pensamento de Agostinho, para
quem a plena sacratização da vida é
imperativo dirigido aos homens. Posta esta prioridade, não será decisivo apurar
se George foi, ou não, filósofo. Porventura um sage, como propôs João Maria de Freitas Branco, ou um profeta, como
sugere Pinharanda Gomes, o filólogo que radicou na literatura boa parte do seu filosofar
encarece em “O valor actual das Faculdades de Filosofia”, escrito na Paraíba, a
importância destas escolas, guardando-lhes, no dizer de LCS, «o papel de
guardiãs dos caminhos do espírito rumo à eternidade». A citação aproxima-nos do
que um Álvaro Ribeiro defendera em O
Problema da Filosofia Portuguesa, ao entrever na Faculdade de Filosofia a cúpula
do sistema educativo.
Mérito maior deste estudo, em
que se rasga uma panorâmica da evolução espiritual de Agostinho rumo ao
ecumenismo que culmina o seu pensamento, é o modo como, neste, o autor averigua
as influências sofridas, caso de Teixeira Rego, cuja Nova Teoria do Sacrifício muito contribuiu para uma acepção
“alimentar” do pecado original como a que A
Comédia Latina, marco miliário da filosofia da história agostiniana, vem
propor. Legítima, também, a suposição de que, através de Rego, a ideação de
Sampaio (Bruno), seu mestre, se insinuou na de Agostinho. Bem que este nos pareça
avesso ao gnosticismo, é de crer que não tenha enjeitado o fundo franciscano da
ética cósmica brunina, visando a redenção integral de um Universo a reintegrar
na eternidade do Espírito puro, origem, condição e destino da Humanidade. A observação
atenta de lugares singelos da obra agostiniana, como o são as quadras, mostra que
a angelologia, axial no autor de A Ideia
de Deus, permite caracetrizar o misticismo de Agostinho, aproximando-o de
Álvaro Ribeiro e António Telmo.
Entre as influições levantadas,
uma se destaca pela sua certeza: a de Jaime Cortesão, cujo percurso biográfico
aliás antecipa, como que o anunciando, o do próprio Agostinho, para o cruzar no
plano dos laços familiares. Tão tributário é o pensamento de Agostinho da historiografia
de seu sogro que ao lermos Reflexão nela
reconhecemos, como num espelho, tópicos vários de Os Factores Democráticos na Formação de Portugal ou O Humanismo Universalista dos Portugueses.
Neste sentido, o livro de LCS vem
enfatizar um paradigma. Por aluvial que seja O Estranhíssimo Colosso,
não o apartemos da bacia hidrográfica que nele transborda, pois a sua originalidade
assenta, porventura, em problematizar as tendências mentais que, partindo do
movimento renascente, informam o século XX português, para as devolver
harmonizadas numa síntese enriquecida. A árvore desenvolve-se em ramos; mas todos
crescem para a luz. Onde Álvaro Ribeiro apela à realização do homem integral
pela tríade Civilização, Cultura, Culto,
responde, ou corresponde, Agostinho da Silva com seu Servir, Criar, Rezar.
O vasto legado da sua produção
teórica no domínio pedagógico e didáctico e a obra assombrosa que em inúmeras experiências
educativas concretizou surgem-nos, neste livro de estrutura dual,
consequentemente iluminados pelas premissas filosóficas subjacentes. O estudo
de Montaigne, e a influência da Escola Nova, mediada pelo convívio com António
Sérgio, ou da Escola Moderna, confluindo na centralidade activa que, por um processo
educativo libertário, se reconhece à criança convergem, na ideação agostiniana,
para o sacral simbolismo do Menino coroado Imperador no culto popular do Divino
Espírito Santo, para aqui se tocar o seu cerne profético e messiânico. Tudo
isto nos é demonstrado num livro cuja fluência estilística o torna acessível ao
comum dos leitores, sem perda de rigor ou objectividade. Denotando enorme
admiração sentida pelo autor estudado, LCS, exemplarmente, não incorre no
perigo, em que outros já sucumbiram, de lhe hipertrofiar facetas ao sabor das próprias
convicções. Só por isso lhe ficaríamos já gratos.
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