MIGUEL DE CERVANTES NO SEU 4°
CENTENÁRIO – UM CRENTE DA FANTASIA QUE INVERTE A FIGURA DO HERÓI NO ROMANCE
Dom Quixote (idealista) e
Sancho Pança (realista) tornam-se Arquétipos do Homem e da Sociedade a Caminho
de si mesmos
Por António Justo
Miguel de Cervantes morreu há 400 anos no dia 23.04.1616 (1).
Publicou, em 1605, o romance “Dom Quixote da Mancha” com 640 páginas e em
1615 a sua continuação (2).
Cervantes, com o “Dom Quixote”, criou o melhor romance de
todos os tempos. A sua luta contra os moinhos de vento inclui uma missão de
resgate do mundo, criando um novo tipo de herói (herói é o que perde, o
fracassado a viver à margem de uma realidade que para o ser inclui o ideal)
que, no seguimento do Crucificado, passa a inspirar também outros géneros de
arte. O escritor Cervantes compreendeu bem a mensagem cristã ao fazer do derrotado
o herói num mundo de alucinados de um combate em torno do sucesso. Acaba com
a primariedade de uma visão que fazia do herói um protagonista infalível. Com
Dom Quixote, Cervantes inicia assim uma nova forma de fazer romances ao
inverter-lhe os termos. O fidalgo Dom Quixote afronta o escárnio e o ridículo
de sociedades renitentes incapazes de compreenderem o seu ideal.
Passados quatro séculos, a obra continua a ser o testemunho
de um idealismo perene que não se deixa apagar pela sombra da História. Ontem como
hoje constata-se a mesma queixa de Cervantes: uma sociedade perdida no dinheiro
e no mercantilismo de interesses e de arbitrariedades.
Opta pela vida de cavaleiro andante, movido pela crença num
mundo caldeado de fantasia criativa e de abertura ao diferente. Recalca a
outra parte de si (o companheiro Sancho Pança) para afirmar a sua parte mais
nobre (o Dom Quixote) e assim fugir à banalidade do factual habitual. Dom
Quixote sobrevive ao tempo por ter um ideal, uma vontade e uma missão
envolventes. Deste modo sobrevive a todos os que se amarram na defesa de
interesses próprios (dinheiro e sucesso) e por isso não passam de meros
sucessores da lista da história numa tarefa de adiadores e enegrecedores do
horizonte social.
O autor que não se contenta
com a leitura/feitura de romances numa vida desafogada
Cervantes nasceu em 1547 nas redondezas de Madrid; estudou
teologia na universidade de Salamanca e na idade de 22 anos torna-se serviçal
do Cardeal Giulio Aquaviva. Pouco tempo depois abandona Roma para seguir a voz
da aventura, distinguindo-se como soldado na defesa da cristandade contra o
poder muçulmano. Depois da batalha naval de Levanto, com a mão mutilada, inicia
o regresso a Espanha; com o romance pronto a ser publicado, foi aprisionado por
corsários argelinos e depois já em fuga oferece-se como fiel penhor dos
companheiros. O governador de Oran condenou o poeta a duas mil chicotadas;
Cervantes volta a fugir sendo depois resgatado por monges com os 300 ducados
dados em resgate pela mãe e a irmã; finalmente volta a Espanha depois de 5 anos
de escravidão e prisão. Depois combateu ainda como soldado em Portugal (o Prior
do Crato oferecera resistência a Filipe II de Espanha!). Cervantes regressa
depois a Espanha continuando a ser malfadado pela sorte.
Cervantes, como a sua figura Dom Quixote, combate contra
moinhos de vento. Isto não é apenas uma mania sua porque ele estará consciente
que os gigantes que combate fazem parte de uma realidade feita de factual e
fantasia, não hesitando em deixar-nos hesitantes da realidade da sua crença: se
o real do factual se o real da fantasia. A vida é feita de mistério e como tal
fermentada pela fantasia num moer de moinhos e vento.
Cervantes criou magistralmente os arquétipos Sancho Pança – o
realista com os pés bem assentes na terra- e Dom Quixote - o idealista que quer
antecipar o futuro (num presente a fazer-se de passado e futuro). São dois
polos de uma dinâmica de que é feita a vida. Cervantes dá preferência à
fantasia na figura do fidalgo Dom Quixote (que no cavalo segue a aventura) ao
colocar como servidor deste o fiel escudeiro Sancho Pança (realista e
pragmático que, seguindo em cima do seu burro, não compreende idealismos nem
teorias que complicam). Sancho Pança revela-se bom conselheiro mas só segue o
caminho na esperança de alguma promessa.
A caminho de si mesmo
O caminheiro, se observa bem as caminhadas da natura e da
cultura, encontra-se a si mesmo em percursos de vidas, todas elas a jorrar na
procura da mesma meta; o caminheiro redescobre-se então em novos panoramas de
alma que se abrem nos ecos do mesmo silêncio que bate e o acompanha nas pegadas
do coração; neste peregrinar chegamos assim à vivência do ritmo universal de
uma inspiração e expiração que ilustra e inspira novas orientações e novos
caminhos.
Dom Quixote (idealista) e Sancho Pança (realista) são
paradigmas do Homem a caminho de si mesmo. (Em termos da metáfora cristã
dir-se-ia que estes modelos do mesmo ser se realizam no caminho e na meta JC, o
protótipo do caminhar num processo de reunião de todo o ser e na união de todas
as paisagens materiais e imateriais numa mesma existência).
António
da Cunha Duarte Justo
Pegadas do
Tempo: http://antonio-justo.eu/?p=3547
(1) No mesmo dia fenece também um outro grande
luzeiro da literatura mundial: Shakespeare o
maior dramaturgo da humanidade. Este é lembrado por todos no seu mote “Ser ou
não ser, esta é a questão” onde se reconhece a pergunta que ultrapassa a
questão da vida e da morte e reconhece a existência como feita de bem e de mal,
de intrigas e confusões amorosas, de ganância e desespero.
(2) A vida e a obra de Cervantes têm
ressaibos da odisseia de Ulisses. Personalidades como Camões, Shakespeare e
Cervantes marcam e perpetuam o Renascimento!
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