“A literatura é como fazer pão
e
a palavra escrita a minha farinha.”
Isabel Allende
A tarde estava calma
de pasmar, ouvindo-se continuamente o chilrear dos pássaros e de quando em vez
o mugir de uma vaca. As glicínias deixavam cair sobre a minha cabeça a sua
volúpia perfumada em cachos lilases. Sentada numa fofa cadeira de cabedal,
debruçava-me sobre a folha de papel em cima da mesa de mármore. Espremia-me
toda a ver se saía alguma coisa. Nem uma palavra! A minha imaginação
comparava-se a um enorme vazio, tão oco e de uma fundura tal que julguei ser
outra pessoa, outro ser, talvez um habitante do centro da terra ou quiçá um
extraterrestre afundado, encalhado sem perspetiva do alto.
À fundura do vazio
juntava-se uma sonolência a puxar o corpo mais para a cama do que para a
literatura.
Uma guinada para a
frente, outra para trás, uma inspiração mais profunda e lenta fechou-me os
olhos e eis-me feita formiga num agro cheio de letras de todos os tamanhos e
feitios. Pássaros sobrevoavam-no cada um com um sinal de pontuação no bico ou
nas patas, fazendo um som ritmado a princípio e depois contínuo mas muito
suave.
Na minha nova pele
de inseto, comecei a arar o campo com imenso cuidado não fosse estragar alguma
letra. Lavrei-o da esquerda para a direita e de cima para baixo, colocando as
letras sobre a terra, no intervalo de cada rego.
Seguiu-se a etapa
mais difícil: escolher as plantas adequadas para cada rego. Coloquei vogais ao
pé de consoantes e de outras vogais. Deixei um espacinho no meio de alguns
conjuntos para encher com sinais de pontuação que fui apanhando quando algum
pássaro, pousado sobre o terreno, os deixava caídos.
Reguei a minha
plantação com água que fui buscar ao copo que estava sobre a mesa.
Delimitei a minha
cultura com pedacinhos de pão nos cantos do papel-agro. Senti-me
verdadeiramente agrícola (de agri – campo, e colere – cultivar).
A cultura ficou
algum tempo de pousio, o que foi muito confortável. Isto de andar a delinear o
campo com um pau para depois o ferir com a semente e em seguida tapar e regar,
gerou um certo cansaço.
Uma aragem abriu-me
os olhos e quer o leitor acredite ou não, eu vi no papel um campo de flores de
diferentes tamanhos e de variadas cores. E li a mensagem que nascera:
“Girassóis,
papoilas, malmequeres, cravos, tulipas, goivos, sécias, cravos da Índia,
azáleas, esterlícias, antúrios, margaridas, camélias, dálias. E os amores
perfeitos?!”
Imaginem esta
agricultura de palavras! O branco dos “ás” sobressaía no meio do azul dos “esses”. O vermelho dos
“is” ruborizava a paisagem tornando-se, juntamente com o amarelo dos “és”, um
cor de laranja de por do sol. No meio do cobre dos “erres”, o cinzento escuro
dos “ós” parecia pequenas luras de minúsculos animais desconhecidos. Os “éles”
eram rebentos verdes e brilhantes e meneavam-se ao sabor da brisa. Os “emes” e
os “cês” oscilavam entre o mármore e o cinzento, atenuando aquele vulcão
multicolor e intercalando os ténues azuis das outras consoantes, algumas de raízes
bem profundas como o “pê”, o “quê”, o “guê” e o “efe”. O “u”, a vogal menos
frequente, ajeitava-se docemente junto ao “tê”, perdendo toda a personalidade
ao pé do “quê”. Vejam só estes amores! Anulando-se daquela forma, tudo para dar
força ao companheiro!
Uma revoada de vento
desequilibrou os rebentos verdes, tendo-se aguentado apenas os que estavam
perto de boas raízes. Assim, vi desaparecerem no ar as azáleas, as esterlícias,
as camélias e as dálias, ouvindo-se cada vez mais longínquo o som li, li li...
Fiquei tão zangada
com o vento que o desafiei: “deixaste-me só com um li, mas as tulipas não mas
hás de levar! Ou o seu nome não derivasse do persa dulband, 'turbante'!” Esquecia-me propositadamente
das frágeis papoilas que, apesar de terem raízes sólidas, aparentavam grande
fragilidade nas pétalas e até os malmequeres ficaram sem graça nenhuma depois
daquela brincadeira do vento com o “éle” impotentemente esmurrado sobre o
“eme”. Acho que este esquecimento propositado se devia ao facto de diluir um pouco
a maldade da primeira sílaba, talvez por não conseguir ver nenhum mal querer
numa flor tão digna.
Podia pôr uma cerca
no campo que afinal era jardim, pensei, para o proteger dos intrusos. Na minha
cabeça já fervilhavam os materiais: canas de bambu, de folião...
Mas tão veloz como o
meu pensamento, o vento apanhou-me de surpresa, pegando no meu jardim,
fazendo-o subir como se fosse um tapete mágico voador e levando-o para tão
longe que na minha pequenez de formiga, nunca mais o pude ver.
Não vos sei dizer se
ainda lá se encontrarão as flores. Mas ainda guardo na memória o seu perfume.
Talvez um dia as palavras voltem para as replantar em terreno fértil. E amores
perfeitos?! Hum, esses não os há....
Maria Eduarda
Rosa
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