quinta-feira, 7 de abril de 2016

Tremoço



Dizia o meu amigo e distinto mentalista, Dr. António Cardoso, numa das suas lições na Sociedade Portuguesa de Naturalogia, que a nossa mente retém com mais facilidade e durabilidade os episódios de maior originalidade, anormalidade, ou estranheza que se nos deparam quotidianamente. Assim é! Guardo na memória as cenas mais estapafúrdias, sem valor ou alcance futuro, ocorridas há um ror de anos, enquanto as coisinhas comezinhas se esfumam num ápice. Já nem me lembro do que foi ontem o meu almoço, vejam lá!

Vem isto a propósito de uma conversa que mantive há meio século com dois jovens estudantes americanos durante animado convívio na Cidade Universitária de Lisboa. Perguntava um deles, muito admirado, o que eram aqueles feijanitos amarelos (little yellow beans) que os portugueses trincavam enquanto beberricavam cerveja. A inesperada pergunta, um tanto ou quanto insólita, ficou gravada na minha memória, pois, estava ingenuamente convencido de que, em todo o mundo, as pessoas acompanhavam a imperial com “camarão do restolho”. Afinal era só em Portugal e arredores!

O popular tremoço está agora na moda e não me admira que o seu preço de venda suba exponencialmente (afinal é a ânsia do lucro que rege a nossa sociedade demoliberal), tais são as mensagens laudatórias que de todo o lado surgem. Talvez por isso, os amigos vêm insistindo para abordar esta leguminosa nas minhas habituais croniquetas botânicas.

O grão seco do tremoço é venenoso. Não se espantem porque vários alimentos que ingerimos diariamente são igualmente tóxicos. Alguns necessitam de tratamento adequado para deixarem de o ser, mas outros nem isso. A gente come descuidadamente o que nos põem à frente, sem ter consciência do que ingere. Para eliminar os alcaloides nocivos do tremoço há que previamente demolhá-lo, durante pelo menos dois dias, cozê-lo e depois passá-lo por várias águas (processo de lixiviação). Finalmente é conservado em salmoura (água com sal).

Os tremoços, ou melhor os tremoceiros, oriundos da Europa meridional e norte de África, preferem solos ácidos e arenosos, inserem-se na família das Fabaceae e pertencem ao género lupinus. Este género engloba cerca de 200 espécies com flores de todas as cores. Devo confessar que inicialmente considerava o Lupinus luteus como o mais adequado para fornecer os tremoços usados na alimentação humana. Estava enganado! O meu amigo, Eng.º Jorge Ferreira, esclareceu que, para o efeito, é correntemente utilizado o Lupinus albus, (flor esbranquiçada) porque possui menos alcaloides e portanto, não é tão amargo. De facto, no conceituado “site” americano “Plantas for a future” aparece uma lista com os graus de comestibilidade dos vários Lupinus, classificando o luteus com o grau 3, enquanto o albus surge com o grau 4. Curiosamente considera o mutabilis, produzido principalmente na América do Sul, como o mais edível, com o grau 5.

Para que não haja acrescidas confusões, visto que todos têm mais ou menos alcaloides tóxicos que é necessário anular, diremos apenas que os tremoceiros são geralmente herbáceas anuais. Têm um sistema radicular desenvolvido, folhas de compridos pecíolos com 5 a 9 folíolos lanceolados, vagens oblongas ligeiramente peludas e flores formando espigas erectas. Nos nossos campos, aparecem também espontaneamente os Lupinus angustifolius, de flores azuis, designados popularmente por tremocilhas.

Todos os lupinus, tal como outras leguminosas, possuem a propriedade de, através dos nódulos das suas raízes, fixarem o azoto atmosférico transformando-o em azoto assimilável pelas restantes plantas. Daí o seu uso como culturas de poisio, funcionando como adubo verde para melhorar os solos aráveis. Esta tem sido, até mais ver, a principal utilidade do tremoceiro.

Entretanto, descobriu-se que as sementes obtidas das vagens do tremoceiro, depois de devidamente tratadas para reduzir os alcaloides (o mais nocivo é o lupanina), possuem uma percentagem razoável de proteína (cerca de 40%), fibra, cálcio, potássio, fósforo, ferro, vitamina E, vitaminas do complexo B, ómega 3 e ómega 6.

São consideradas emolientes, diuréticas e cicatrizantes, favorecendo o controlo do índice glicémico, visto que são destituídas de amido. Podem ser redutoras do apetite para contrariar as tendências para a obesidade, ao contrário de outros aperitivos.

A farinha de tremoço é muito usada nos países andinos para confecionar sopas, bolachas e outros produtos alimentares.

A minha esposa especializou-se na preparação de um paté delicioso e nutritivo, já apresentado com sucesso nos almoços sazonais da Sociedade Portuguesa de Naturalogia, cuja receita é mais ou menos como segue:
0,5 Kg de tremoço devidamente cozido, 1 abacate grande maduro, 1dl de azeite, e o sumo de meio limão. Juntam-se os ingredientes e tritura-se tudo muito bem. Para que o paté fique com a adequada consistência pastosa, pode-se juntar uma colher de sopa da água salgada onde o tremoço foi marinado.
Servem para barrar umas tostinhas e “ficam a matar”, como entrada, na nossa habitual ementa vegetariana, confecionada, toda ela, com géneros de produção biológica e plantas silvestres comestíveis.

O próximo repasto de gastronomia pedagógica e de são convívio, o Almoço da Primavera, já está agendado para o dia 30 de abril de 2016. Inscrevam-se e apareçam!


Miguel Boieiro

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