Abdul Cadre
abdul.cadre@gmail.com
ROMPER BARREIRAS, como é óbvio e a
própria palavra romper no-lo diz, implica violência, o que varia em cada acto é
o grau e a justificação (ou a desculpa).
A violência está profundamente
enraizada na natureza, na humanidade, em cada um de nós. Nascer é uma violência
e morrer é-o também. Na pragmática, no acaso e na transcendência há uma
constante de violência. Concebemos o parto sem dor para as nossas crias, mas
não o soubemos inventar para a reprodução dos dias.
Olhando o passado distante, poucos se
apercebem do facto de ter sido há milhares de anos que o homem rompeu a
barreira do som pela primeira vez. Verdade, isso mesmo, há milhares de anos,
sem qualquer introdução aqui de realismo fantástico. Há milhares de anos,
quando era ainda impensável voar, coisa que apenas atribuíamos aos insectos, às
aves e aos anjos, embora o morcego, que não pertencia nem pertence a nenhuma
destas categorias, também voasse. E bem. E continua a voar.
Há milhares de anos, repetimos, quando
não havia imagem sonhada sequer de aviãozinho de pau-e-corda, quanto mais de
supersonorização.
Foi há milhares de anos quando,
digamos que por desfastio ou necessidade de afirmação, inventámos o chicote.
Dava um prazer dos diachos ouvir aquele tessiquezape, mas não foi pelo prazer
dessa música concreta que o inventámos. Não. O que nos moveu — o que sempre nos
move — foi pensar no que lucraríamos com o castigo do lombo das bestas e dos
escravos submetidos aos interesses da nossa tripa e do nosso ócio. Ontem como
hoje, é a tripa que mais ordena, que tudo condiciona.
À luz do que sabemos hoje, torna-se
perfeitamente evidente que rompíamos então a barreira do som apenas do lado de
fora, e é claro que, a partir daí, aperfeiçoámos imenso a técnica do
tessiquezape. E não confundamos as coisas: nos seus voos entre Paris e Nova
Iorque, o Concorde, entretanto falecido e descontinuado, mais não foi do que um
fait-divers, porque afinal, bem lá no fundo, o que nos movia era o insofismável
desejo do abate seguro e rápido do inimigo em voo, ou o seu churrasco, quando
rastejante, não o devaneio transcrito nos jornais de chegar ao destino antes da
hora da partida.
Pois é: contrariamente ao que fingem
pensar certas almas piedosas, do parto ao genocídio há o exercício constante da
violência e toda a acção humana se caracteriza pela ruptura de barreiras reais
ou imaginárias: o romper das águas. ´
Será uma maldição?
Não e sim! É a maldição da besta,
porque ao homem, assim o presumimos, caberia tomar consciência dos medos
escondidos nos seus porões, a desocultação dos seus atavismos e a sublimação
dos seus actos pela iluminação do gesto. Palpita-nos, porém, que isto não seja
muito bom para o share e seja demasiado prejudicial para o mercado...
E é de temer — sem dúvida que sim —
que se confunda iluminação do gesto com o incêndio das cidades, à bomba ou por
archote, e a iluminação do homem pela sua submissão a qualquer doutrina
salvífica que pseudo-iluminados de ocasião decretem.
Faz muito tempo, um judeu de origem
portuguesa, nascido não se sabe muito bem onde, inventou uma consigna que se
tornou emblemática para aquela que viria a tornar-se na mais ecuménica das
revoluções triunfantes, mas todavia ainda não completamente realizada, dada a
grande dificuldade da quase quadratura do círculo que é manter inseparáveis
Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
É comum etiquetar-se de francesa esta
revolução, mas não devíamos chamar-lhe assim. O ter-se tornado tão contagiosa
deveu muito à ganância e à intrepidez napoleónicas, mas Napoleão não era
originariamente francês, era corso. Burguesa, sim, é que ela foi e não deixou
de ter presente o tessiquezape do nosso atavismo, como não poderia deixar de
ser. Se beneficiamos hoje — e muito — dos seus aspectos mais positivos, tal não
deve impedir de nos lembrarmos das grandes iniquidades perpetradas e de ter
presente que toda a rebelião, como disse alguém, é um invento que serve para
substituir uma forma de tirania por outra.
Por aquilo que já dissemos e pelo que
digamos mais adiante, poderá inferir-se que somos pessimistas, mas colocamos
aqui este parêntesis para afiançar que não. Aliás, como sabem, pessimistas e
optimistas cabem na tal parábola do copo meio cheio e do copo meio vazio.
Também se poderá pensar que achamos que o mundo esteja hoje pior do que no
passado. Não está. Além disso, o homem está bem melhor e, sob o ponto de vista
material, nunca esteve tão confortavelmente instalado quanto hoje. O que
acontece é que chegámos a um fim de ciclo, as nossas instituições caminham para
a putrefacção e ainda não arregaçámos as mangas para nos reorganizarmos para
uma nova era e um novo mundo. Só isto, que não é pouco.
Assim, que não se assustem os
leitores, porque é evidente que, apesar da pesada atracção da nossa
animalidade, progredimos alguma coisa no sentido da rejeição dos infernos que
fomos criando ao longo da nossa caminhada. Todavia, descuidámos muitos valores
que pareciam conquistas seguras. Por exemplo, falar em honra, respeito e verdade
provoca comummente o riso e o desdém; são conceitos incomportáveis para o
discurso em uso, o discurso que o mercado determina e a apatia consente.
Quanto ao que progredimos, poderíamos
dizer que do atavismo reproduzido na tradição oral, da pragmática da tribo, dos
tabus, da união pelo sangue e pelo chefe, das entoações mágicas e guerreiras,
da agressividade de sobrevivência e domínio progredimos para a História, a
Filosofia, a Religião, a Política, a Poesia, o Canto, a Dança, o Desporto, mas
do atavismo guerreiro forjado na irmandade e na entreajuda, da hospitalidade,
da caridade, da religiosidade, da força física, da inteligência emocional,
regredimos ou subvertemos perigosamente para a destruição massiva, o
individualismo, a competitividade, a bastardia, o condomínio fechado;
desdenhámos o sem-abrigo e enaltecemos o mercenário, vergámos a cerviz ante o
poder do dinheiro, mergulhámos no estranho fanatismo da indiferença, detestámos
as manhãs e inundámos as noites de néon...
E vejam como, para além de subsistir
por toda a parte a velha escravatura stricto sensu, surgiram novas formas de
escravatura e de dependência com características feudo-vassálicas: o trabalho
temporário, o desemprego técnico, o migrante em fuga, os recursos humanos
descartáveis...
Recursos humanos! Como se humano fosse
coisa.
Em nome de um sistema que a si próprio
se nega, estamos a tornar o mundo um lugar de ostracismo habitado por
supranumerários; uma selva pós-moderna com selvagens reciclados, tudo isto
embrulhado em apatia e justificado pela cibernética, porque só a cibernética
pode explicar que é, aquilo que não é. A montante e a jusante da nossa apatia,
os incendiários de sempre põem todo o zelo em que não falte nunca a devida
ração de medo. Que sejamos avestruzes é o seu descanso, que não nos
interroguemos sobre os nossos direitos de cidadania, a nossa liberdade, a nossa
realização e a nossa felicidade é a sua garantia de conservação do poder, de
manutenção dos privilégios.
Se a decadência de todas as
instituições se acentua a cada dia que passa neste tempo que apodrece, que
legitimidade sobra aos governos, sufragados ou não?
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