quinta-feira, 7 de maio de 2020

Graffitar a Literatura (XXIV)


Quando os bichos falavam”


«Eu julgava que nos distinguíamos dos animais por uma razão mais elevada, mas, afinal, o que nó temos mais do que eles é imaginação»
(Terra de Nod, Judith Navarro, 1961: 172)
  
1. As fábulas, que ouvi quando miúdo, eram o reino da fantasia e imaginação. Começavam, invariavelmente, assim: ‘No tempo em que os animais falavam…’ Então, eram esses animais pensantes que me davam belas lições de vida. E foi essa linha que retomei no meu livro Bichos à Solta (Edições Vírgula - Chancela do Sítio do Livro, 2016, 77 p.). Pus golfinhos, baleias, rãs, cavalos, hamsters, esquilos, cães, gatos, flamingos, cegonhas a ‘escreverem’… postais à minha filha mais nova. E deste modo, 
«regressamos a uma das mais poderosas e intemporais intuições da humanidade, a de que os animais falam e comunicam com os humanos. Os mitos, tradições e lendas das mais diversas culturas falam-nos de um tempo em que as diferentes espécies de seres comungavam e comunicavam entre si, não estando ainda separadas e fechadas pelas barreiras do medo, da agressão, da estranheza e da indiferença. Essas narrativas evocam uma harmonia original do mundo e da criação que não deixa de suscitar uma irresistível saudade, por mais que o que nos dizem pareça hoje estranho a muitos dos nossos contemporâneos, filhos de uma civilização que se afasta cada vez mais da natureza e do convívio com as vozes e os afectos dos seres não-humanos.» (Prefácio, p. 13)

Bichos à Solta é um livro juvenil (ou talvez não) que conta, num registo epistolar, 25 estórias, ilustradas pelas minhas filhas Lionor Dupic e Constança Souta. Nas palavras de Paulo Borges (FL-UL), que assina o prefácio, essas narrativas «constituem uma profunda lição de educação ambiental».
O tema central destes escritos gira à volta de um dos objectivos fulcrais de luta social da contemporaneidade: a conservação da biodiversidade, o equilíbrio ambiental e a relação dos homens com os animais. 
«Homens e mulheres de diferentes países, crenças e religiões unem-se num movimento global de acção em torno desse nobre desígnio que é a luta pela defesa do Ambiente. (…) Um eixo de acção social que passa muito pela defesa e preservação do planeta Terra. Esta, sim, é uma causa passível de unir a Humanidade. Caso contrário, todos pereceremos com a implosão do planeta azul. Saibamos então evitar essa catástrofe!» (p. 9)

2. Este mural painting, de Third (Nuno Palhas, nascido em Vila Nova de Gaia, em 1979), incluído no Muraliza 2015 (decorreu entre 29 de Junho e 6 de Julho), associa o corvo marinho de faces brancas à fundação do município de Cascais – 1364.
O cormorão (como também é conhecido), não foi inserido no meu Bichos à Solta. Na terceira parte da livro, andam por lá outras aves, como a mais alta da fauna portuguesa – o narcísico flamingo:
«E é por essas zonas mais sossegadas e protegidas que muitas aves migratórias, como nós, os flamingos, descansam na longa viagem entre o norte da Europa, frio, e a África, a sul, quente. Por ali nos “reservamos”, sempre em grupo, naqueles sapais das antigas salinas, nos esteiros da Moita, ou até na baía do Seixal, de águas baixas e ricas de vida piscícola. Nesse período, não nos esforçamos em grandes voos. Antes nos miramos nas águas tranquilas enquanto vamos tratando da nossa plumagem de tons rosa. Somos um pouco narcísicos, confesso. Mas não descuramos as “refeições”: o nosso longo pescoço em Z, desaparece por entre as penas, quando mergulha, em movimento rápido, à procura de alimento.» (p. 58)

E as cegonhas parteiras que a ciência escolar tratou de varrer do imaginário infantil, em nome de uma educação sexual positivista e precoce:
«Como reparaste, somos uma ave de grande porte, mas de movimentos lentos e tranquilos (nada que se compare com o nervosismo saltitante de pardais ou andorinhas). Estamos em sintonia com estas serenas planuras do Sul que nos acolhem. Adoramos viver na Comporta, a caminho das praias de Tróia, e nos férteis arrozais de Alcácer, nas margem do Sado, fontes do nosso bem estar. (…)
Já te questionaste por que apreciamos os pontos altos para nidificar? Não é a mania das alturas ou o simples prazer de olhar o mundo de cima para baixo. Talvez seja para nos resguardarmos do Homem, não se pode confiar nele» (p. 60)

Bichos à Soltadisponível em http://www.sitiodolivro.pt/Bichos-a-Solta, nas livrarias Ferin (Baixa de Lisboa) e RG Livreiros (Cascais), é um bom presente para filhos, netos e todos os adultos com empenhamento (crítico) na causa Ecológica preocupados com a defesa do Ambiente e dos Animais.

Post scriptum:
Este mural, pode ser visto na parede lateral de um prédio de 2 pisos, na Travessa da Ressurreição, nº 11, no centro da vila de Cascais, bem perto do Largo da Estação (CP). Aguentou-se incólume quase cinco anos. O vandalismo tardou mas acabou por chegar!
«Estou de passagem
amo o efémero»
(Eugénio de Andrade, 1990)
Os versos do poeta sintetizam o ‘drama’ da street art.
Desta feita, foi o spray can de um writer, em tirocínio, que resolveu testemunhar a sua (ainda) inábil capacidade técnico-artística. Ali escrevinhou qualquer coisa parecida com AiMOK (reconheço a minha enorme dificuldade em descodificar writings). Fez-me recordar o filme de Fyodor Otsep (1934) e a obra de Stefan Zweig (1922) Amok que esteve na sua génese (Relógio D’Água, 2013):
«–– Amok?… Creio recordar-me… é uma espécie de embriaguez… entre os malaios.
– É mais do que embriaguez… é a loucura, de uma espécie de raiva humana, literalmente falando… uma crise de monomania assassina e insensata, à qual uma intoxicação alcoólica não se pode comparar. (…) A causa é, sem dúvida, o clima, esta atmosfera densa e asfixiante que oprime os nervos, como uma trovoada, até que eles acabam por descarregar… (p. 37).
writer em causa devia estar com o amok. Descarregou a sua ‘raiva’ no corvo marinho de faces brancas e, indirectamente, no autor deste mural, assumindo-se, assim, como ‘assassino’ de obra de arte.
O corvo marinho bem deve ter tentado dar umas valentes bicadas no selvático writer quando este perpetrava o atentado à arte de rua e ao ambiente.
Se pudesse, o cormorão fugia dali. «Já estou um pouco farto deste “confinamento”; e mais agora, este pequeno mural, tal como está, não é digno de se ver. Vou dar uns mergulhos no mar costeiro, à procura de peixe fresco para me alimentar.» E, num desabafo final: «Gente desta não se recomenda!»

Luís Souta (texto e fotos)

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