terça-feira, 5 de junho de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


por

Luís F. de A. Gomes


Para a
Cristina Croca
que um dia também sonhou com uma comunidade assim 


Suponha que depois começo a pensar eticamente, ao ponto de reconhecer que os meus próprios interesses não podem contar mais do que os interesses dos outros simplesmente por serem meus. (…)”
                                                                                 Peter Singer

1º. CADERNO

Nunca tive o hábito de escrever o que quer que fosse. A não ser as cartas que enviava ao paizinho, naqueles Verões intermináveis que passava com os avós e que apenas começaram depois daquele estúpido acidente em que ia perdendo a vida, quando levava a bilha com água para o avô e decidi fazer equilíbrio pelo muro de um tanque, cheio até acima como o exigiam as necessidades de regar, pelos fins de tardes que amarelavam o verdume das serranias envolventes ao vale, a secura do estio que, segundo os mais idosos, abençoava a uva e amadurecia o milho, tanque onde caí e me afogaria, não fossem as saias terem feito uma espécie de balão que me ajudou a boiar enquanto esbracejava e gritava pulmões à solta e o facto de o filho do caseiro andar por perto e rapidamente ter surgido com a mão que me puxou para a berma e me ajudou a encavalitar-me na salvação da parede. O susto foi de mãos ao céu e o caso logo foi divulgado pelo lado do acto heróico do rapaz que fora o anjo da guarda de um tropeção azarado no caminho de um dever para com o homem que no campo zelava para que a monda não deixasse as ervas daninhas disputarem o alimento das espigas que haveriam de desencobrir massarocas grandes e fartas. Lembro-me que a avozinha atribuiu a minha boa sorte ao poder de um milagre e também eu, durante muitos dos anos que se seguiram, acreditei que assim tinha sido e quando aos pés da cama rezava o terço, antes de me deitar para dormir, coisa que sempre ela me dizia para fazer, nunca me esquecia de agradecer a Deus tamanha ventura. Só por isso, uns dois ou três dias depois da minha aventura e já refeita da tensão que o medo me deixara no corpo e me causava arrepios só por pensar no sucedido, tive a vontade de tudo contar ao pai e à mãe e, como quem mata saudades, lá narrei eu as minhas impressões daquelas férias e das minhas habilidades na culinária que a velha Lucinda me ia ensinando para o contento do gosto dos patrões e dos meninos, uma vez que era ponto assente a presença à mesa de um protegido que o Padre da aldeia criava em face das incapacidades e misérias de um pai bêbado e de uma mãe doente. Pelo meio descrevi o episódio da divina intervenção e recordo claramente os pormenores com que, seguindo as expressões dos mais velhos da casa, os anjinhos tinham guiado o rapaz para me livrar de uma morte certa. Depois acostumei-me e até que os avós faleceram um a seguir ao outro no Inverno em que frequentei o último ano do Liceu, não se passou semana alguma em que me esquecesse de fazer o relato daqueles dias encantados pelas capoeiras e uma hortinha de brincar com que a paciência do avozinho me brindara e mais tarde pelos livros que, dos escolares, passavam às histórias recomendáveis e apropriadas de Júlio Dinis e um ou outro romance especialmente bem visto para raparigas. Foram pois essas as únicas ocasiões em que, fora das exigências dos professores, me sentei para escrever outra coisa que não fosse, de alguma forma, um exercício escolar. E se nunca tive o hábito, da mesma maneira jamais lhe ganhei o gosto e não tivessem sido essas obrigações, estou em crer que não seria por moto próprio que pegaria na caneta para registar a mais pequena nota. Gosto de ler, é certo e ainda hoje que chego à noite moída e sonolenta, mais precisando de sono e reparo físico quase que da própria comida, raramente cerro os olhos sem que, pelo menos, algumas linhas avancem no livro de cabeceira. A escrita é outra coisa e dá muito trabalho e por isso nunca a cultivei, sequer alguma vez me passou pela cabeça a mais leve veleidade de aí pretender chegar. Nem mesmo saberei dizer porque me sentei aqui para escrever, agora que todos dormem e uns quantos ressonam e eu me decidi a botar estas palavras para o papel, mas a verdade é que sem saber porquê, tenho sentido uma vontade de registar o que temos feito neste fim de mundo onde o candeeiro a petróleo me alumia e a água ainda vem directamente do poço para os potes. Talvez seja por influência do José Pedro que tantas vezes se lamenta por não ter tido idade para se oferecer como voluntário na guerra de Espanha e aí combater pela liberdade contra os fascistas que ganharam e de que se ouvem histórias tenebrosas de matanças a eito e que num destes serões se disse motivado pelo desejo de construir algo novo e desse modo contribuir para um futuro de justiça e igualdade, quem sabe se terá sido daí que me despertou este desejo de registar as minhas impressões, os meus pensamentos, já não sobre os azuis cálidos e sonhadores das férias grandes, antes a respeito destes dias duros e incertos em que vejo crescer à minha volta os alicerces deste mundo que pretendemos erigir para nele vivermos. É claro que esse ponto de vista e o entusiasmo com que todos o acolheram e, sem o menor desfalecimento, se dão ao trabalho de materializar, certamente que tudo isso terá o seu efeito para esta excitação em que me encontro e me faz encarar tudo isto com a euforia que naturalmente acompanhou todo o género de pioneiros. Contudo não me parece que tenha vindo por aí este estranho impulso que aqui me prende pela madrugada quando o mais avisado seria estar a descansar. Eu não me tenho por uma pessoa dada a grandes profundidades do pensamento. Muito embora esteja longe de ser um exemplo acabado de uma prosélita acéfala e acrítica, antes pelo contrário me vejo como alguém que procura formular os seus próprios juízos e tenta avaliar as situações pela sua própria cabeça, não seria pois agora que me iria deixar inebriar por pontos de vista terceiros em função dos quais sentiria este apelo interior para passar a escrito os meus sentimentos e opiniões. Não. Esse apelo teria que ser isso mesmo, interior, teria que partir de dentro e as suas causas só aí se encontrarem. E com toda a sinceridade tenho que admitir que foi precisamente isso que aconteceu. É que eu dei por mim a sentir-me como se estivesse a participar em algo grandioso, se não fosse um enormíssimo exagero, falaria até de uma epopeia e, esse sim, esse foi o verdadeiro mote deste meu esforço e será por ele que, a partir deste momento, aqui virei para fazer destas linhas o ponto de encontro para as minhas confidências. Por hoje é tudo.

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