terça-feira, 19 de junho de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


Há dias que ando com esta dúvida no meu pensamento. Há algum problema por termos o sonho de um objectivo e por pretendermos atingi-lo? Afinal que mal pode vir ao mundo por sermos sonhadores? Admito que estas semanas têm sido árduas e difíceis. O termos que nos levantar pelo raiar da aurora, para passarmos jornada após jornada a labutar fisicamente, no que me diz respeito e tenho a certeza que não serei a única, naquilo que se pode dizer com toda a propriedade, no limite das forças, não será, com toda a certeza, a melhor condição para que possamos reflectir mais detalhadamente sobre o que quer que seja. Trabalhar no auxílio de abrir caboucos de uma dúzia de futuras casas, carregar com areias e massas daqui para ali, alinhar tijolos e passá-los ao que faz de trolha, arcar com baldes de cimento e deslocá-los pelo gancho do braço e ajudar a vergar o ferro e com ele a compor geometrias que farão os pilares das convenções; parar para preparar os almoços e os jantares e por fim tratar de lavar e arrumar as louças e as roupas para que um mínimo de normalidade se faça sentir num quotidiano de entrega total ao que tem de ser feito, tudo isso poderá ser um tónico poderoso para que o corpo peça o alívio do descanso e o sono se instale tão naturalmente que nem damos conta do instante em que as pálpebras soçobram pelo efeito do cansaço, mas não são propícias a que nos deixemos levar pela meditação num problema, por mais simples e muito menos serão o cenário preferível para que haja a disponibilidade e especialmente a disposição para que do tratamento das ideias passemos ao registo escrito das divagações e eventuais conclusões que daquelas possamos extrair. A prioridade de todos e cada um tem que ir direitinha para o principal propósito desta primeira fase em que nos encontramos e que é o de nos instalarmos no menor número de meses que nos seja possível. Pelo menos por enquanto, ainda não houve aborrecimentos de maior e todos têm sido capazes de manter a calma e uma atitude tolerante pelo facto de termos que nos revezar nas duas únicas retretes já construídas e provisórias ou de termos que esperar uma vez ditada à sorte para podermos tomar banho na única banheira que por ora possuímos. Mas este viver a monte num casarão entulhado pelo desalinho do seu próprio passado e mais os caixotes e caixas dos espólios que vieram e que ainda não pudemos abrir e arrumar por falta de uma habitação condigna, nunca este ajuntamento de saltimbancos poderia ser o melhor ambiente para aqui trabucarmos e, em conjunto, construirmos o nosso próprio modo de vida e, com ele, apesar de ser apenas o nosso, um mundo melhor para todos. É importantíssimo que tenhamos as casas prontas antes do começo do Verão para que as paredes possam secar e sobretudo para que não tenhamos que passar outra invernia, então de fio a pavio, em quartos que se por um lado nos protegem da chuva, por outro lado, deixam passar o frio por todas as frestas. E depois, ao que parece, há quem tenha pressa em vir a ter filhos para o que se revela imprescindível a existência de um espaço onde possam crescer com nível aceitável de conforto e condições de saúde. Daí que eu tenha chegado à noite cansada e desejosa de me estender numa cama que, mesmo não passando de um simples colchão de palha velho e duro, se me apresenta como um pequeno pedaço de um jardim do paraíso. Tal não é a fadiga. E o que possa ter pensado durante o dia, esta ou aquela observação que me possa ter ocorrido e que eu, em outras circunstâncias, poderia desenvolver, tem, por isso, ficado por aí, sem nunca ter passado a barreira do sono. Ora não será pois este estado o mais benéfico para que me dê a meditar seja lá no quer for. Contudo, não foi por isso que eu deixei de pensar no problema e a verdade é que feita a ressalva sobre este contexto, no plano que me estou a referir, adverso, eu continuo sem perceber que mal possa haver em sermos tomados por um bando de sonhadores. Para mais nos tempos que correm em que a vitória das forças fascistas parece ser uma realidade e a Europa, toda ela, está a ferro e a fogo e sob o manto da bestialidade da ocupação germânica em que, pelos ecos que nos vão chegando, os alemães se comportam como senhores em terra conquistada e dão corpo a todo o género de atrocidades que têm semeado o medo e a morte entre aqueles que eles consideram de raças inferiores. Aqui estamos distantes de tudo e não fossem os racionamentos, quase poderíamos dizer que vivemos uma paz absoluta. Não temos notícias, a não ser pela via do “Século” que umas duas vezes por mês, ao fim-de-semana, quem vai tem trazido da cidade com os abastecimentos com que provemos às nossas necessidades. Mas do que soubemos antes de virmos e pelo que vamos sabendo naquilo que a censura deixa passar, é fácil de perceber que a coisa está preta para o lado daqueles que não gostam de viver esmagados pela opressão e toda a miséria que sempre lhe está associada. Fala-se de prisões arbitrárias e deportações de populações, de gente obrigada a trabalhar nas fábricas e nas quintas alemãs, sabe-se lá em que condições e segundo o Félix que tem parentes que fugiram de Praga ainda antes do conflito e viveram em Lisboa antes de rumarem aos Estados Unidos da América onde actualmente se encontram, aquilo que tem sido feito com os judeus é algo tão atroz que uma qualquer pessoa de bem tem dificuldades sequer em acreditar no que se diz, quanto mais em entender como pode alguém tratar o seu semelhante dessas maneiras. Aquilo que se conta é tão aberrante que eu nem sei se as matanças de que falam não serão o sofrimento menor para quem tem sido sucessivamente espancado e arrancado das suas casas e empregos, em suma, a quem tem sido tirada a vida em vida para ser atirado para os campos de trabalhos forçados, a fazer fé no que escutei, sem o mais leve toque de humanidade. E tudo em nome de álibis que só não fazem corar de vergonha os criminosos que os propalam, como o de serem agentes do comunismo internacional ou inimigos da Grande Alemanha, como se tais pudessem ser consideradas características naturais de uma população. Coitados dos judeus que são obrigados a deixarem tudo para trás como se fossem meros objectos que se arredam de um lado para o outro e, se calhar por isso, são arregimentados e, de acordo com o que nos contou este nosso amigo, transportados como se de simples bestas de carga se tratassem. É precisamente este tempo e este mundo conturbado em que estamos a viver que me levaram a questionar o que possa haver de mal em sermos sonhadores, afinal, em querermos sonhar com uma vida melhor para todos. Em função de o que é que nos poderão chamar assim? Do bom senso, particularmente daquele que nos diz que devemos traçar objectivos para que ao longo de uma vida de labuta, mais ou menos intensa e difícil, melhoremos a nossa condição e deixemos aos nossos filhos mais do que os nossos pais nos legaram? E não paramos um único instante para nos interrogarmos se estaríamos efectivamente a sonhar quando nos juntámos para trabalhar em conjunto e, por essa via, prover ao sustento? Será que é de sonho que isso se trata? Não será possível pôr isto em prática? Todos nós estamos aqui voluntariamente e isso não conta? Não será isso o melhor indicativo de que apenas da nossa força de vontade dependerá o virmos a ser capazes de realizar os nossos propósitos? O tempo o dirá, é certo, mas ainda que venhamos a verificar que ficámos aquém do que nos propúnhamos, não será isso que, à posteriori, fará de nós um bando de sonhadores, antes, e isso seria muito pior, um grupo de falhados ou, para não ser tão severa, um grupo de pessoas que desse modo teriam falhado naquilo que pretendiam fazer.
Ouço a vida a decorrer numa das divisões. Chegou o momento de sorrateiramente me recolher aos lençóis.

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