terça-feira, 26 de junho de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


Nós somos libertários, diz o Quico –que raio de nome- justamente um daqueles de quem eu não gosto e ainda menos da sua mulher, uma afectadinha que nem sei como aderiu a uma aventura destas, toda ela cheia de nove horas e para quem tudo é uma complicação, quando não desdenha das soluções que se avançam e tem sempre aquele hábito irritante de procurar aquilo que pode desvalorizar o que na opinião dos outros possa estar a ser bem feito. Bem, este convívio a que nos vemos forçados também não deixa de ser um verdadeiro teste de paciência, na medida em que não podemos deixar de moldar as nossas próprias vontades no sentido de um ajuste que, se não a todos, pelo menos, à maioria contente. Mas é também uma prova por que passa algo que provavelmente para todos é novo e que é a experiência da tolerância, o termos que aceitar os outros como eles são e se nos apresentam, provocando as pontes que nos possam unir na demanda de objectivos comuns, para tanto dando maior relevo e importância àquilo que tenhamos em comum. Tanto mais quando nos temos que relacionar com gente assim que, pela maneira como falam, do modo como se comportam, deixam no semelhante a sensação de que se presumem, não digo superiores, mas, no mínimo dos mínimos, mais importantes. Nem sei explicar muito bem ou, para ser mais exacta, nem sei como racionalizar e, portanto, como expressá-lo. Será mais do domínio daquelas coisas que se sentem, aquela empatia ou repulsa que se sente perante alguém que vemos pela primeira vez e de quem jamais ouvíramos falar. Pois é isso que se passa da minha parte para com o Quico e a companheira, como eles fazem questão em sublinhar, num tom que, para mim, por mais estranho que possa parecer, desde logo, pelo contexto em que é produzido, não deixa ainda assim de trazer um certo laivo de vaidade. A mulher que traz permanentemente no olhar uma expressão de aflição, como se fosse a saudade para com algo irremediavelmente perdido e de quem a todo o momento se espera que surja de cabelo arranjado, como quem faz da ida ao cabeleireiro uma sessão de terapia. E a sua voz de cana rachada que dos verbos só conhece o imperativo, a não ser quando se põe a falar a torto e a direito do como era, como fazia, como era o hábito lá em casa. Sinceramente nem sei se é isso que mais me irrita se aquele arzinho dele, como se até uma simples ida à casa de banho fosse o mais distinto assunto de estado. O seu ar de carneiro mal morto a que os óculos redondos de tartaruga conferem a decoração inerente à mais elevada intelectualidade e que a mim deixa a impressão de falsidade, tal qual sucederia se alguém pretendesse passar-se por um outrem muito diferente. E com isso sobressai a aparência do oportunista que, não sei porquê, é a imagem que fica e sempre que ao longe o observo com um pouco mais de atenção, nunca deixo de ver o retardatário que se junta ao movimento depois da vitória estar garantida. Como nós somos… Devo estar a ser injusta, afinal os dois aqui estão desde a primeira hora e seria uma grande mentirosa se dissesse que, mesmo em face das pieguices e peneiras dela, algum deles deixou de se apresentar com o maior dos empenhos possíveis. Acontece que estas coisas são assim; às vezes, como diz a sabedoria popular, mais vale cair em graça que ser engraçado e o mais certo é que seja este um desses casos. Nós somos libertários, é o que diz o Quico, com isso querendo afirmar que o que nos une é, antes de tudo, um sentido de querermos viver fora das regras de um mundo injusto e cruel. Pode ser que o seja mas pessoalmente não estarei tão certa disso e depois tenho muitas dúvidas que o termo possa ser usado unicamente nesse sentido e isto não apenas por uma questão de semântica, antes de mais pelo conteúdo filosófico e político que podemos atribuir-lhe, muito embora não seja isso que aqui me interessa.
Creio que já escrevi que desconheço as motivações pessoais que possam ter trazido cada um de nós até aqui. Partilhada será a desilusão, uma certa desilusão com este mundo que o paizinho não compreendeu e, avaliando pelas cartas que me envia, continua sem compreender. Foi precisamente essa a expressão que o Manuel usou quando me falou das ideias desconcertantes e também aqui o termo é dele, ideias essas que o José Pedro lhe apresentara numa conversa em que expressou o desencanto e o desalento que sentia perante um mundo que, tudo o indicava, se preparava para a guerra e com a agravante de estarmos num país em que a polícia bate em quem nada mais pede que um naco de pão para si e os seus. Desilusão foi o que ele disse que sentia depois de ver os falangistas ganharem com o apoio de outros exércitos sem que aqueles que combateram pelo progresso e a liberdade tivessem gozado de um amparo semelhante entre os estados que poderiam ser seus aliados e que antes haviam reconhecido a república. Vendo formarem-se no horizonte os castelos cinzentos de que haveriam de troar os rugidos dos canhões e sabendo que a esperança de futuro se reduzia a essa estreita janela com vista para as atrocidades. E foi então que perante o amigo de liceu confessou o desejo de se sumir, sem com isso significar o mais pequeno sinal de suicídio. Sumir-se desta sociedade mazelada pela miséria e a ganância, isolar-se para que, se um dia viesse a ter filhos, os poder criar, pelo menos, em paz. Ele não se importaria mesmo nada se tivesse que plantar para comer e tinha a certeza de que seria capaz de enfrentar o que fosse preciso, dos mais duros trabalhos às mais ingratas carências, se a partir disso conseguisse o suficiente para viver em tranquilidade sem ter que andar a pisar este e aquele para daí tirar o seu sustento e conforto. E não pensasse o meu homem que estava perante o capricho passageiro de quem nunca tivera que aprender a ganhar a subsistência. Simplesmente olhava para o mundo e achava uma injustiça que tantos fossem aqueles que viviam praticamente sem nada, nem mesmo a luz das letras que nos permite o intervalo de felicidade de uma leitura e tão poucos fossem os que tudo concentram no poder das suas mãos. Ter filhos para ter que os preparar para essa vida de lobos e carneiros, acabaria por transformar aquilo que naturalmente poderia ser um acto de esperança em mais um pauzinho para a fogueira da desumanidade. E a verdade é que ele tinha os meios para passar do sonho à realidade e de modo algum o incomodaria ter que abdicar do proveito estritamente pessoal para compartilhar a possibilidade de experimentar viver uma vida diferente. Os seus pais tinham acabado de falecer, praticamente um a seguir ao outro e, de repente, por obra e graça da enorme riqueza acumulada, ele vira-se proprietário de centenas de hectares de terra e ainda de uma fortuna colossal em dinheiro e outros bens. Dessa forma ele poderia dar-se ao luxo de mergulhar em tal exílio, para isso convidando os amigos que, à sua semelhança, mais do que as mordomias do bom viver, pretendessem a paz e a harmonia de viverem de bem com os outros. Foi aí que tudo isto começou e a base só a posso encontrar numa palavra, desilusão, pois foi esse o sentimento que, de alguma maneira, todos acabaram por exprimir quando se decidiram acompanhar aqueles que já tinham assentado que vinham. Não é pois o facto de algum de nós ser libertário aquilo que nos trouxe, antes a desilusão perante um momento da História que a todos parece não ter a possibilidade de um fim anunciado.
Quanto a mim não sei o que vai acontecer no futuro. Para já partilho a convicção de que isto que estamos a fazer é justamente aquilo que poderia ser feito face a este negrume que paira sobre o amanhã. Mas não sei e ninguém saberá se iremos ser capazes sequer de resistir às agruras e vicissitudes de uma escolha em que praticamente todos nos apresentamos como se estivéssemos de olhos vendados. Mas a vida é isso mesmo; o dom de adivinhar a nenhum assiste e na realidade sempre nos vemos confrontados com as novidades e as situações para as quais não temos qualquer referência e que, por isso mesmo, temos de nos comportar como quem experimenta uma solução, sabendo que pode vir a ser confrontado com a imperiosidade de voltar atrás. Não sei o que o futuro nos reservará e pouco me admiraria se acabássemos por partir e deixar nas nossas costas as ruínas de um abandono. Por agora estamos aqui, vamos então ver o que acontecerá daqui para a frente.
E aqui me fico, por hoje. Sinto-me exausta.

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

"Para já partilho a convicção de que isto que estamos a fazer é justamente aquilo que poderia ser feito face a este negrume que paira sobre o amanhã."

Os nossos amanhãs nunca cantam, nunca são radiosos...

...túneis há, promessas de luzes ao fim do túnel, também.

Sempre vivi com um problema que precisa ser resolvido, que está em fase de resolução.

Parece-me que está a chegar o momento de testar o nosso instinto de sobrevivência...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Vamos então ver se o amanhã desta comunidade cantou. Será que o futuro foi longo? O próprio mestre o dirá.

Aquele abraço, companheiro
Luís