quarta-feira, 4 de novembro de 2015

AGOSTINHO DA SILVA – A LIBERDADE GUIANDO O POVO


Pedro Martins


A prática da famosa trilogia da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mais citada do que vivida, nunca foi dada aos homens senão parcelar e esporadicamente, e esses valores só fazem sentido na sua globalidade.
Vejamos o exemplo ainda recente das duas superpotências mundiais: os Estados Unidos da América e a União Soviética.
Na América, há liberdade mas não há igualdade.
Na União Soviética havia igualdade mas não havia liberdade.
Tanto num caso, como no outro, foi esquecida a fraternidade, o espírito fraternal, próprio de irmãos, que poderia realmente estabelecer a harmonia entre os homens. E tudo porque, uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude.
Agostinho da Silva


1. Estas palavras escutou-as António Reis Marques a Agostinho da Silva em Sesimbra, tinha o filósofo acabado de recusar a Ordem da Liberdade; e são palavras tanto mais importantes quanto são raras, na obra de Agostinho, as referências expressas a esta trilogia, que, como o filósofo refere, emergiu com a Revolução Francesa.
2.   Percebemos, porém, pelo que afirmou ao seu amigo sesimbrense, a importância que lhe atribuía.
3.      Agostinho da Silva incita-nos a pensar harmoniosamente a tríade.
4.      Há hoje a tendência, autorizada pelo próprio Agostinho, de o filiar na herança de Fernando Pessoa.
5.     Foi, porém, Sampaio Bruno quem, em A Ideia de Deus, afirmou que a Liberdade sem a Igualdade e a Fraternidade não passa de Egoísmo.
6.   De Sampaio Bruno, de resto, afirmou Fernando Pessoa ser ele o único homem que, em Portugal, mostrava compreender.
7.   Que Agostinho compreendeu bem o ternário, pois que muito o pensou para lhe resolver as aparentes contradições nos termos e o viver em acto, mostra-o a leitura de toda a sua obra.
8.   Tenho falado em ternário, trilogia ou… tríade, o que, doravante, nos convida a pensarmos por tríades, e aqui lembrarei Álvaro Ribeiro, que, em A Razão Animada, afirma que a tríade é a lei inexorável da manifestação.
9.  Vamos considerar três planos de abordagem: o teológico (princípios), o moral (valores) e o político (regras).
10. Quem diz teológico diz metafísico, mas Agostinho não é particularmente dado a  minúcias nestes domínios.
11. Tirando talvez a Proposição, esboço de uma constituição política que escreveu a seguir ao 25 de Abril de 1974, também não encontramos propriamente na sua obra aquilo a que Sampaio Bruno, n’A Ideia de Deus, chama um corpo de doutrina política concreto e imediatamente aplicável.
12.   Mais lhe interessa o plano moral, o jogo dramático do bem e do mal.
13. Inspirado em Joaquim de Flora, Agostinho distingue três eras sucessivas na marcha histórica da Humanidade para a redenção:
14.  a Idade Antiga, Idade do Pai e da Lei, caracterizada pelo judaísmo do ponto de vista religioso e moral e por Roma do ponto de vista cívico e prático. A este catolicismo mosaico responde sobretudo a ideia de Igualdade, como racionalização da disciplina, como se o pecado original tivesse de ser expiado por injunções de carácter militar
15.  a Idade Média, Idade do Filho e do Amor, em que ainda nos encontramos, e que se caracteriza pelo catolicismo cristão, que vem afirmar a ideia de Fraternidade;
16.  e a Idade Nova, Idade do Espírito Santo, caracterizada pelo catolicismo ecuménico,  verdadeiramente universal, e dominada pela ideia de Liberdade.
17. São três também, e em termos muito idênticos, as etapas que nós agora  poderemos encontrar no desenvolvimento do pensamento de Agostinho.
18. Na fase inicial, anterior à sua partida para o Brasil em 1944, e a que, por comodidade de expressão, chamarei seareira, o acento tónico é depositado na ideia de Igualdade, mostrando Agostinho, como observa Miguel Real, uma total confiança na existência de uma sociedade sergiana de homens iguais.
19.  Num dos textos reunidos nas Considerações, significativamente intitulado “Amor do Povo”, e que quase se poderia considerar um paradigma das suas ideias nesta fase, escreve Agostinho: Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura e de ascensão o mais rápida possível da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção.
20. A inteligência e a vontade, noções que, revestidas dos mesmos ou de outros vocábulos, amiúde ressurgem em muitos dos escritos seareiros de Agostinho, são aqui os meios postos ao serviço do fim igualitário visado, do qual nos dão notícia segura termos como justiça económica, justiça política ou equilíbrio social, associados a um anelo ascensional.
21. Do movimento depreende-se o nivelamento pelo meridiano do in medium   horaciano que o Pascoaes de Santo Agostinho irá perseguir.
22. Palavras como massa enorme e cálculo caracterizam bem o modo abstracto, matemático e mecânico – quase diríamos, frio – como o pensador então encara os problemas que a sociedade lhe coloca.
23.   Não se vislumbra aqui o estabelecimento de qualquer relação directa com o todo, e muito menos de uma relação individualizada com as partes que o compõem, sem que com isso saiam diminuídas as boas intenções subjacentes.
24. O laço, racional, que a vontade assiste, firma-se pelo arrimo à ideia; e da concreção desta resulta reflexo, necessário, o benefício geral.
25.  Na fase brasileira, em que Agostinho se aproxima, de um modo muito evidente, da Igreja Católica, prevalece então a ideia de Fraternidade. Revela-se então, segundo o mesmo Miguel Real, um forte sentido de espiritualização das suas teses, iniciada, ainda em Portugal, com Sete Cartas a um Jovem Filósofo e Conversação com Diotima.
26. Irei um pouco mais atrás: em Doutrina Cristã, folheto de 1943 que o leva ao Aljube, já Agostinho da Silva predispõe, lado a lado e sem discriminação hierárquica, a inteligência e o amor, díade estruturante que aliás rege o desenvolvimento de todo escrito.
27. Proclamada pelo Estrangeiro da Conversação com Diotima, a prevalência do amor sobre a inteligência corporizada na filosofia helénica, instaura e anuncia no fim de um ciclo o que virá a caracterizar o seguinte.
28. No livro As Aproximações, onde recolhe artigos publicados nos anos cinquenta no jornal O Estado de São Paulo, Agostinho, num escrito intitulado “Ritmos de Marcha”, exara, lapidar: Amor atinge de pronto e por essência, o que a inteligência e vontade de obedecer atingem por desvios.
29. O confronto com o que, duas décadas antes, afirmara em “Amor do Povo” é irresistível, ditando agora a superioridade da charitas perante o binómio voluntarista-intelectualista, para aqui empregarmos a definição que de si mesmo dava António Sérgio polemizando em 1913 com Teixeira de Pascoaes.
30. É importante observar que a inteligência e a vontade não são arredadas. Por longo tempo ainda, não poderá Agostinho prescindir da Igualdade, como adiante se verá.
31. Percebe-se melhor esta mudança considerando o seguinte trecho d’O Homem Universal de Teixeira de Pascoaes: o sentimento religioso da irmandade (…) é o sentimento abstracto da igualdade, substancializado e aquecido, ou vivo e amoroso.
32. N’As Aproximações, Agostinho da Silva, embora esteja ciente dos perigos de opressão hierárquica que a Fraternidade envolve, parece mais preocupado com os riscos heterodoxos que uma libertação sempre poderá implicar.
33.  Na fase final da sua obra, que se inicia com o regresso a Portugal em 1969, e com a composição, logo no ano seguinte, do livro Educação de Portugal, predomina já a Liberdade, considerada, para tudo, como a base essencial: quanto aos outros, até, e sobretudo, no amor se tem de ter cuidado; gostar dos outros e lhes querer bem tem sido o motivo de muita opressão e de muita morte dos espíritos que vinham para viver; é esta uma das boas intenções de que mais está cheio o inferno; não tens essencialmente de amar nos outros senão a liberdade, a deles e a tua; têm, pelo amor, de deixar de ser escravos, como temos nós, pelo amor, de deixar de sermos donos do escravo.
34. Aqui, estamos já seguramente perante um pensador libertário. Digo libertário, e não anarquista: se a palavra an-arquia exprime, pela sua etimologia, a negação do princípio, talvez a Agostinho possamos então chamar acrata, aquele que recusa a coacção do poder político.
35. E, mais do que libertário, ao seu pensamento chamaremos talvez teolibertário, porque é um pensamento garantido pela ideia e pela presença de Deus, que, no princípio e no fim, na origem e como destino, é essencialmente Liberdade.
36. A meta de uma sociedade sem outro poder político que não seja o do amor divino exercendo-se ininterruptamente nos corações dos homens – sociedade que é o Reino de Deus (na terra) ou o Paraíso, e que Agostinho faz corresponder à Idade Nova ou Idade do Espírito Santo – é uma meta longínqua, porventura remota, mas em que o filósofo acredita.
37.  Poderemos assinalar três divergências fundamentais quando confrontamos o seu pensamento libertário com uma boa parte do anarquismo clássico: 1) a afirmação da ideia e da presença de Deus; 2) a dilacção, no tempo, da meta ideal, só alcançável após uma longa evolução democrática (e não com uma revolução!); 3) e a recusa do emprego de métodos violentos.
38.  A respeito deste último ponto, vale a pena referir um trecho d’As Aproximações, em que se nega abertamente a possibilidade de atingir um fim, a paz, a liberdade, a acracia, por um meio que lhe é estruturalmente antagónico, a violência, a tirania, o poder.
39. Há, porém, uma convergência essencial, e de resto muito importante: a descentralização administrativa que Agostinho da Silva desejava para os municípios portugueses e a federação autónoma política, em que, segundo ele, as nações ibéricas se deveriam congregar. Uns, os municípios, e outras, as nações, seriam livres mas unos.
40. E aqui encontramos a ideia de Unidade na Liberdade, a que já Sampaio Bruno aspirava no final do seu livro O Encoberto, ideia que Agostinho, na Educação de Portugal, retoma com a seguinte fórmula: a ninguém se compelindo, mas a ninguém deixando para trás.
41. Este anseio libertário de Agostinho é constante: atravessa as três fases de evolução do seu pensamento.
42.   Lê-se n’O Cristianismo, de 1942: No Reino não haverá Estado, com príncipes que oprimam os cidadãos, antes cada um será, voluntariamente, por amor e interesse do espírito, o servidor dos outros; no Reino não haverá processos, nem tribunais, nem juízes; no Reino não haverá senão bondade, amor, fervor espiritual, contemplação das ideias, profunda, segura, inabalável felicidade.
43. Lê-se em Um Fernando Pessoa, de 1959: Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do exterior para o interior, de um César para seus súbditos, dos tribunais para os corpos, paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada: Reino de Deus que surja pela transformação interior do homem.
44.  Lê-se em Educação de Portugal, de 1970: O reino que virá é o reino daqueles que foram crucificados em todas as épocas, por todas as políticas e por todas as ideologias, apenas porque acima de tudo amavam a liberdade e a consideravam, não ao medo, às restrições e à força, como o grande motor do mundo, o reino daquele Deus que viam definindo-se fundamentalmente por não obedecer a nada e a ninguém senão à sua divina natureza; e reino que desejam para homens que não sintam obrigação alguma que não seja a de se aproximarem quanto possível da divindade de ser livre, livre no viver, livre no saber, livre no criar.
45.  Neste último livro, Agostinho proclama a esperança no irredutível amor da liberdade que, à semelhança de Deus, é essência do homem.
46.  A Liberdade consiste, afinal, em ser cada um aquilo que é, mas sem nunca perder de vista o que na Educação de Portugal se afirma: o supremo destino do homem consiste em ser santo e deus, portanto livre – pois tem a liberdade como sua única lei esse Deus que está sempre inventando e sempre com uma infinita possibilidade de mais inventar, como se ainda não tivesse inventado nada.
47.  Tal como a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade são princípios teológicos ou metafísicos.
48. A Fraternidade é a primeira e a mais imediata forma de Igualdade, a forma princip(i)al da Igualdade.
49.  Esta minha afirmação é garantida pela ideia, que encontramos em Agostinho, de um Deus transcendente Pai de todos os homens e a todos, portanto, tornando irmãos, conforme se lê no seu livro Reflexão à margem da Literatura Portuguesa.
50.  De forma talvez mais explícita, esta ideia já se encontrava em A Ideia de Deus, de Sampaio Bruno, onde se afirma que todos são filhos de Deus, e todos igualmente do amoroso coração de Deus.
51. Todavia, estamos perante uma regra-paradoxo, uma regra toda feita de excepções, porque aquilo que seja a Igualdade metafísica deve ser entendido à luz da Liberdade do Deus criador na sua incessante capacidade de individuação: todos somos excepcionais na medida em que nos consideramos filhos de Deus – lê-se em As Aproximações.
52. Vinda da origem, esta imensa dignidade do ser humano é proclamada em Educação de Portugal e projecta-se na dedução dos valores morais e das regras políticas.
53.  Tal como sucede com Sampaio Bruno e com Teixeira de Pascoaes, a Igualdade, entendida como Igualdade económica, é condição da Fraternidade. Lê-se n’As Aproximações: não pode haver sentimentos fraternais entre indivíduos economicamente subordinados; não pode haver sentimentos de fraternidade entre povos dos quais um é o explorador económico e o outro o explorado.
54.  Ainda neste livro, verifica-se que Agostinho da Silva é socialista, tanto quanto um pensador teolibertário o pode ser: a máquina socialista, porque é a melhor máquina económica que existe, pode, portanto, servir ao catolicismo e tem este que, tomando-o inteiramente para si, não em nome de simples considerações racionalistas ou humanitárias, como o fazem os socialistas, mas em nome da vontade de Deus, fazer dele um dos seus instrumentos de domínio sobre a Terra, isto é, da sua caminhada, lenta, longa e difícil para os reinos divinos.
55.  O seu socialismo vem afinal a ser o cooperativismo, que, diz-nos ele, apesar de seus três defeitos, o de se confundir, no nome, com o corporativismo, o de exigir governo que o proteja dos contra-ataques do capitalismo e o de não resolver senão insatisfatoriamente o problema das relações de empregado com empregador, é ainda o sistema socialista mais perfeito no respeitar da natureza humana e, talvez, no avanço para uma tecnologia de automação.
56. Esta escolha, que é afirmada na Educação de Portugal, e que a Proposição amplamente confirma, ilustra e desenvolve, atravessa toda a sua obra. De alguma forma, nasce e cresce sob a influência do magistério de António Sérgio, nos anos 30, e mantém-se no Brasil, onde Agostinho, num dos artigos de As Aproximações, considera o cooperativismo – apesar das objecções que, lucidamente, não deixa de ponderar – como o sistema que não apresentaria defeito algum, e que seria mesmo capaz de resolver a antinomia da planificação da produção e da liberdade individual.
57. A referência, que há pouco encontrámos, à tecnologia de automação conduz-nos à ideia de abundância como condição da Igualdade, para aqui tocarmos um ponto crucial do pensamento de Agostinho da Silva.
58. Praticamente impossível na Idade Antiga, conforme Agostinho sublinha n’O Cristianismo, e dificilmente concretizável na Idade Média, como resulta d’As Aproximações, a abundância material garantida pelos sucessivos surtos tecnológicos é uma aquisição de relevo da civilização protestante.
59. Agostinho da Silva pretendeu sempre superar esta civilização, porque via nela uma afirmação individualista baseada na força, no domínio, na concorrência e no lucro, e por isso mesmo hostil à ideia cristã de Fraternidade traduzindo-se na cooperação.
60.  Mas o nosso pensador reconhecia a importância do desenvolvimento científico e tecnológico que essa civilização tinha alcançado, e procurou pô-lo ao serviço das suas ideias. A ciência, a técnica e a tecnologia poderiam garantir a abundância.
61.  É essa abundância que, uma vez alcançada, sustenta, por exemplo, a generosidade revelada na seguinte passagem da Educação de Portugal: a ninguém recusará a entrada e para atender a quantos se apresentem multiplicará o número de escolas.
62. Neste ponto, torna-se notório que existe uma dependência mútua entre a Igualdade e a Fraternidade, uma vez que esta também é condição daquela.
63. Considera Agostinho, ainda na Educação de Portugal, que todos vamos ter que ser professores de todos e cada um dos que sabe um pouco mais ensinará os que sabem um pouco menos.
64.  E no mesmo livro propõe ainda que ensinem os alunos que mais sabem tudo o que sabem aos que ainda o não saibam.
65. Tudo isto, no fundo, nos aparece à imagem e semelhança daqueles homens de caridade que, por não haver livros para todos, liam os seus e lhes acrescentavam comentários, que também liam, de tudo isto se chamando lentes.
66.  Estes homens de caridade chegam-nos da Universidade medieval, numa época em que as condições técnicas de produção e distribuição não permitiam inteira liberdade, como estava na intenção original da doutrina de Cristo – segundo Agostinho nos afirma, precisamente num artigo em que fala da “Agonia e Morte da Universidade”.
67.  A Caridade, virtude cuja prática Agostinho tem grande dificuldade em vislumbrar na civilização protestante, surge-nos assim como o fermento e o cimento da Fraternidade.
68.  Ela, a Caridade, segundo se lê em Reflexão, é o amor irrestrito que, embora consciente dos defeitos do amado, o ama sem pensar em saldo positivo ou negativo.
69. Nunca, como aqui, Agostinho terá estado tão próximo dos seus mestres libertários: Sampaio Bruno afirmando em A Ideia de Deus que o carácter do acto moral consiste em (…) não admitir retribuição alguma, pois que o mesmo só é puro (isto é, só é verdadeiramente moral) quando não recebe nada em troca; e Pascoaes lembrando, em Santo Agostinho, que um anjo é transparente ou transparência. Não rouba luz nem espaço. Dá tudo em troca de nada e é toda ausência, no céu, a sua presença neste mundo.
70.  Vemos assim que a Caridade não é um dado sociológico. Ela faz sobretudo apelo à noção, essencialmente individual e religiosa, de conversão, e por isso Agostinho da Silva nos recorda, em Um Fernando Pessoa, que a conversão religiosa ao Menino Jesus deve preceder a revolução social. Rememore-se o testemunho de António Reis Marques: para Agostinho uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude. 
71.  A redenção não aparece, assim, como obra exclusiva de uma Divina Providência que, intervindo pela efusão da Graça no palco da História, garantisse o desfilar seguro das três Idades.
72.  Agostinho da Silva, que é um pensador voluntarioso, faz depender o progresso da Humanidade do exercício, pelos homens, das três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade – e por aqui talvez se possa explicar o tom, que eu não diria desesperado, porque a Esperança foi virtude que ele nunca deixou de cultivar, mas pelo menos exasperado de algumas das suas páginas.
73.  Por fim, será a Fraternidade a aparecer-nos como condição da Liberdade. E este é um ponto assente logo na Doutrina Cristã, o folheto de 1943 que o levará à prisão, e onde se enunciam as três liberdades essenciais: a Liberdade económica, que deve aqui ser entendida como libertação e não como liberalismo; a Liberdade de cultura (liberdade de pensamento, de criação e de expressão) e a Liberdade de organização social (liberalismo político). É pela conjugação concertada desta tríade que se garante que no Reino Divino, na organização humana mais perfeita, não haverá nenhuma restrição de cultura, nenhuma coacção de governo, nenhuma propriedade.
74.  Ora, a tudo isto se poderá chegar gradualmente e pelo esforço fraterno de todos, conforme se lê no final da Doutrina Cristã.
75.  A liberdade de cultura e a liberdade de organização social configuram o núcleo essencial do pensamento político de Agostinho, que é a democracia – posta embora em paralelo com o socialismo económico e sempre em trânsito evolutivo para a acracia.
76.  Note-se, por curiosidade, como as mesmas ideias se encontram no Santo Agostinho de Pascoaes: a democracia, aliada ao trabalho, à justiça económica e à liberdade filosófica, é o regime mais humano.
77.  Começando agora por insistir na ideia de que não encontramos, no pensamento de Agostinho da Silva, um corpo de doutrina política concreto e imediatamente aplicável, quero fazer notar que, quinze anos depois da Doutrina Cristã, no livro Um Fernando Pessoa, e numa perspectiva, ou prospectiva, ecuménica que será ainda desenvolvida na Educação de Portugal, o filósofo persiste e insiste nestas ideias, ao considerar que o Portugal futuro que ele entrevê em O Encoberto, derradeira parte da Mensagem de Fernando Pessoa, é um Portugal que se não importará com a definição de regimes políticos, de regimes económicos ou de instituições religiosas, porque esse será o problema de cada uma das suas unidades, só ficando, por essência e definição do próprio conceito – Portugal, totalmente excluídas aquelas formas institucionais que vão, como o autoritarismo político, o liberalismo económico ou a negação do Espírito Santo, contra o que há de estrutural no próprio homem.
78.  Na recusa do autoritarismo em política está implícita a Liberdade; na recusa do liberalismo em economia está implícita a Igualdade; e na profissão de fé no Espírito Santo está implícita a Fraternidade, pois se o Espírito Santo é o Amor que une o Pai ao Filho, ou aos filhos, a estes se comunica e os torna irmãos.
79.  N’As Aproximações Agostinho refere-se à forma de convivência superior que se expressa pela democracia, entendendo aqui a palavra no seu sentido de possibilidade de dialogar, sem erguer a voz e escutando e procurando entender a opinião do adversário, (…), significando depois o submeter-se a minoria não propriamente à vitória da maioria, mas o aceitar a dita minoria que pode ter havido no que pensa um desvio do normal entendimento humano.
80.   Nesta passagem vai já implícita, em política, a mesma ideia de humildade que, em religião, na visão de Agostinho, caracteriza o cristianismo, como, de resto, se comprova por uma outra passagem do mesmo livro: o que, porém, a Igreja exige de nós, antes de tudo, é a humildade de obedecer; e não deixa de ser curioso que tanto se rebelem contra isto os homens que, na democracia, regime essencialmente cristão, aceitam como parte do jogo a submissão das minorias, simples aspecto dos absurdos a que pode levar-se separar da Igreja o poder temporal.
81.  Que a democracia seja uma etapa intermédia no caminho para a acracia mostra-o o facto de Agostinho da Silva a considerar um regime essencialmente cristão, e sabe-se como, para o filósofo, o cristianismo é a religião da Idade Média, e, por isso, da Fraternidade, do mesmo modo que a religião do Espírito irá dominar a Idade Nova, aquela em que a Liberdade plenamente se cumprirá.
82. A democracia, onde Agostinho, na esteira de Pascoaes, concebe os partidos políticos como colaboradores e não como adversários, é uma forma já aperfeiçoada de governação; mas o melhor regime, que será o do Reino quando ele chegar, é a acracia, o teolibertarismo.
83.  Do mesmo modo, o socialismo, com a propriedade colectiva, não é ainda o melhor dos sistemas económicos: na Idade Nova, diz Agostinho da Silva repetidamente, imperará a não-propriedade.
84.  Continuando n’As Aproximações, importa considerar a liberdade de pensamento religioso, com seus “Riscos Heterodoxos”, título de um escrito onde ela nos surge problematizada assim: mas o que se não deve esquecer é que na medida em que faz parte da Igreja, e não há ninguém que, quer o queira quer não queira, não faça parte de uma Igreja de que é cabeça o Pai de todos os homens, o primeiro dever seu é o de não quebrar a sua fraternidade com a massa, fraternidade que é representada, prática e simbolicamente, pela obediência à hierarquia, hierarquia a que todos podem ser chamados.
85. Eis a prevalência da Fraternidade sobre a Liberdade, bem característica do período brasileiro, sem que Agostinho perca a noção de que o verdadeiro universalismo se deveria caracterizar pela sua recusa em excluir os heréticos.
86.  D’As Aproximações para a Educação de Portugal, algo muda: ecumenismo consiste em ver todas as religiões como os vários aspectos da religião portuguesa, e por Portugal esperemos que humana, do Espírito, que um dia, na sua forma última e pura, abandonará todos os ritos pelo de viver a vida graciosa, trocará todas as orações pelo perder-se em Deus.
87.  A acracia em política e a não-propriedade em economia culminam, em religião, na Idade Nova, no ecumenismo, uma não-religião abrangendo todas as religiões institucionais para, em superior síntese católica, as transcender pela unidade essencial do Espírito, que é Deus.
88. Ensaiando uma correspondência das três virtudes teologais com o ternário sagrado, poderemos relacionar a Fé com a Igualdade; a Esperança com a Liberdade; e a Caridade com a Fraternidade.
89. Estas correspondências não são, porém, inteiramente válidas quando consideramos o pensamento de Agostinho, visto que na sua teoria da História a Esperança surge a par da Fraternidade na Idade Média e a Caridade a par da Liberdade na Idade Nova.
90.  A Esperança – que para Álvaro Ribeiro é a grande virtude de quem age sem que lhe seja positivamente garantido o êxito da sua acção – é espera na incerteza, o que, se faz plenamente sentido na Idade Média, mal se imagina já na consumação da Idade Nova – e por isso a criança feita Deus, símbolo maior do Reino para Agostinho, aparece valorizada, na Educação de Portugal, com que o filósofo inaugura a derradeira fase da sua ideação, pela atenção contínua à vida numa existência total no presente.
91.  Por amor do Futuro, e não do presente, é a espera – e por isso a Esperança – a que Agostinho nos exorta nas derradeiras palavras de Um Fernando Pessoa, que, com a Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, forma o díptico central da etapa intermédia – a brasileira – das três em que o seu pensamento biograficamente se desenvolve.
92. Compreende-se esta dicotomia entre o presente e o futuro, frisada a partir de obras tão marcantes de dois sucessivos e distintos períodos da ideação agostiniana.
93.  Algo paradoxalmente, a plena, porque plenamente amorosa, vivência do presente surge ainda como uma realidade futura; e a plena, porque plenamente amorosa, vivência do futuro deve moldar a realidade presente. Aquela diz-se Caridade; esta Esperança.
94. Assim, se a Esperança vai a par da Fraternidade, a Caridade é inerente à Liberdade, para que a chama se não apague, ideia que, logo em 1942, Agostinho, n’O Cristianismo, tornou bem explícita: no Reino não haverá senão bondade, amor, fervor espiritual, contemplação das ideias, profunda, segura, inabalável felicidade.
95.  Reconheça-se, pois, na arquitectura do seu pensamento, uma função basilar à Igualdade, uma função pontifícia à Fraternidade e uma função reitora à Liberdade.
96.  Esta última é a estrela, ou, falando agora aristotelicamente, a causa final que orienta a Humanidade na sua marcha histórica para a redenção, a proposta maior que o filósofo faz ao povo português na sua Proposição de 1974.  
97.  A Liberdade é, pois, quem guia, para aqui se empregar um verbo tão caro a Agostinho, que adrede, não raro, dele lança mão, trazendo-nos à memória o célebre quadro alegórico de Delacroix, que se guarda no Museu do Louvre e que constitui um emblema da Revolução Francesa: A Liberdade Guiando o Povo.
98.  Do mesmo modo, a Fraternidade, com o seu fermento da Caridade, é a causa eficiente dessa caminhada, a que a Igualdade, que é a imposição de uma mesma forma a várias matérias, garante a causa material e a causa formal.
99.  Tenho para mim que a grandeza de Agostinho da Silva, O Estranhíssimo Colosso no dizer de António Cândido Franco, estará em boa parte na façanha de uma vida vivida à imagem da ideia com que pensou a História.
100. Agostinho, bem que o não tenha nunca afirmado, via-se a si mesmo, e com razões para tal, como um supra-Pessoa, o que muito bem quadra à colossal efígie que o biógrafo lhe relevou.
101.  Não será por isso errado encerrar estas linhas com algumas palavras do autor de Mensagem que perfeitamente ilustram aquela ideia: Somos iguais no Pai, irmãos no Filho e livres no Espírito Santo.  



1 comentário:

MJC disse...

101 pontos que constituem uma pérola para a compreensão da vida e obra de Agostinho da Silva.
De muita utilidade me serve.

Manuel João Croca