Pedro Martins
A
prática da famosa trilogia da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, mais citada do que vivida, nunca foi dada aos homens senão
parcelar e esporadicamente, e esses valores só fazem sentido na sua
globalidade.
Vejamos
o exemplo ainda recente das duas superpotências mundiais: os Estados Unidos da
América e a União Soviética.
Na
América, há liberdade mas não há igualdade.
Na
União Soviética havia igualdade mas não havia liberdade.
Tanto
num caso, como no outro, foi esquecida a fraternidade, o espírito fraternal,
próprio de irmãos, que poderia realmente estabelecer a harmonia entre os
homens. E tudo porque, uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude.
Agostinho da Silva
1. Estas palavras escutou-as António Reis Marques
a Agostinho da Silva em Sesimbra, tinha o filósofo acabado de recusar a Ordem
da Liberdade; e são palavras tanto mais importantes quanto são raras, na obra
de Agostinho, as referências expressas a esta trilogia, que, como o filósofo
refere, emergiu com a Revolução Francesa.
2. Percebemos, porém, pelo que afirmou ao seu
amigo sesimbrense, a importância que lhe atribuía.
3.
Agostinho da Silva incita-nos a pensar
harmoniosamente a tríade.
4.
Há hoje a tendência, autorizada pelo próprio
Agostinho, de o filiar na herança de Fernando Pessoa.
5. Foi, porém, Sampaio Bruno quem, em A Ideia de Deus, afirmou que a Liberdade sem a Igualdade e a Fraternidade
não passa de Egoísmo.
6. De Sampaio Bruno, de resto, afirmou Fernando Pessoa
ser ele o único homem que, em Portugal, mostrava
compreender.
7. Que Agostinho compreendeu bem o ternário, pois que
muito o pensou para lhe resolver as aparentes contradições nos termos e o viver
em acto, mostra-o a leitura de toda a sua obra.
8. Tenho falado em ternário, trilogia ou… tríade, o
que, doravante, nos convida a pensarmos por tríades, e aqui lembrarei Álvaro
Ribeiro, que, em A Razão Animada, afirma
que a tríade é a lei inexorável da
manifestação.
9. Vamos considerar três planos de abordagem: o teológico (princípios), o moral (valores) e o político (regras).
10. Quem diz teológico
diz metafísico, mas Agostinho não é particularmente
dado a minúcias nestes domínios.
11. Tirando
talvez a Proposição, esboço de uma constituição
política que escreveu a seguir ao 25 de Abril de 1974, também não encontramos propriamente
na sua obra aquilo a que Sampaio Bruno, n’A
Ideia de Deus, chama um corpo de
doutrina política concreto e imediatamente aplicável.
12. Mais lhe
interessa o plano moral, o jogo dramático do bem e do mal.
13. Inspirado
em Joaquim de Flora, Agostinho distingue três eras sucessivas na marcha
histórica da Humanidade para a redenção:
14. a Idade Antiga, Idade do Pai e da Lei, caracterizada
pelo judaísmo do ponto de vista religioso
e moral e por Roma do ponto de vista cívico
e prático. A este catolicismo mosaico
responde sobretudo a ideia de Igualdade, como racionalização da disciplina, como se o pecado original tivesse de
ser expiado por injunções de carácter
militar;
15. a Idade Média, Idade do Filho e do Amor, em
que ainda nos encontramos, e que se caracteriza pelo catolicismo cristão, que vem afirmar a ideia de Fraternidade;
16. e a Idade Nova, Idade do Espírito Santo,
caracterizada pelo catolicismo ecuménico, verdadeiramente universal, e dominada pela ideia de Liberdade.
17. São três também, e em termos muito idênticos,
as etapas que nós agora poderemos encontrar no desenvolvimento do pensamento de
Agostinho.
18. Na fase inicial, anterior à sua partida para o
Brasil em 1944, e a que, por comodidade de expressão, chamarei seareira, o acento tónico é depositado
na ideia de Igualdade, mostrando Agostinho, como observa Miguel Real, uma total confiança na existência de uma
sociedade sergiana de homens iguais.
19. Num dos textos
reunidos nas Considerações, significativamente
intitulado “Amor do Povo”, e que quase se poderia considerar um paradigma das
suas ideias nesta fase, escreve Agostinho: Interessa-nos o povo porque nele se
apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema
de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de
equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura e de ascensão o mais
rápida possível da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que
eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que
serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do
bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo
algum, a nossa última tenção.
20. A inteligência e a vontade, noções que,
revestidas dos mesmos ou de outros vocábulos, amiúde ressurgem em muitos dos
escritos seareiros de Agostinho, são aqui os meios postos ao serviço do fim
igualitário visado, do qual nos dão notícia segura termos como justiça económica, justiça política ou equilíbrio social, associados a um anelo ascensional.
21. Do movimento
depreende-se o nivelamento pelo meridiano do in medium horaciano que o Pascoaes de Santo Agostinho irá perseguir.
22. Palavras como massa enorme e cálculo caracterizam bem o
modo abstracto, matemático e mecânico – quase diríamos, frio – como o pensador então encara os problemas que a sociedade lhe
coloca.
23. Não se vislumbra aqui
o estabelecimento de qualquer relação directa com o todo, e muito menos de uma
relação individualizada com as partes que o compõem, sem que com isso saiam
diminuídas as boas intenções subjacentes.
24. O laço, racional, que a vontade assiste, firma-se pelo
arrimo à ideia; e da concreção desta resulta reflexo, necessário, o benefício
geral.
25. Na fase brasileira, em que Agostinho se
aproxima, de um modo muito evidente, da Igreja Católica, prevalece então a
ideia de Fraternidade. Revela-se então, segundo o mesmo Miguel Real, um forte sentido de espiritualização das
suas teses, iniciada, ainda em Portugal, com Sete Cartas a um Jovem Filósofo e Conversação com Diotima.
26. Irei
um pouco mais atrás: em Doutrina Cristã,
folheto de 1943 que o leva ao Aljube, já Agostinho da Silva predispõe, lado a
lado e sem discriminação hierárquica, a inteligência
e o amor, díade estruturante que aliás
rege o desenvolvimento de todo escrito.
27. Proclamada
pelo Estrangeiro da Conversação com
Diotima, a prevalência do amor
sobre a inteligência corporizada na
filosofia helénica, instaura e anuncia no fim de um ciclo o que virá a
caracterizar o seguinte.
28. No
livro As Aproximações, onde recolhe
artigos publicados nos anos cinquenta no jornal O Estado de São Paulo, Agostinho, num
escrito intitulado “Ritmos de Marcha”, exara, lapidar: Amor atinge de pronto e por
essência, o que a inteligência e vontade de obedecer atingem por desvios.
29. O confronto com o que, duas décadas antes,
afirmara em “Amor do Povo” é irresistível, ditando agora a superioridade da charitas perante o binómio voluntarista-intelectualista, para aqui
empregarmos a definição que de si mesmo dava António Sérgio polemizando em 1913
com Teixeira de Pascoaes.
30. É importante observar que a inteligência e a vontade não são arredadas.
Por longo tempo ainda, não poderá Agostinho prescindir da Igualdade, como
adiante se verá.
31. Percebe-se
melhor esta mudança considerando o seguinte trecho d’O Homem Universal de Teixeira de Pascoaes: o sentimento religioso da irmandade (…) é o sentimento abstracto da
igualdade, substancializado e aquecido, ou vivo e amoroso.
32. N’As
Aproximações, Agostinho da Silva, embora esteja ciente dos perigos de opressão hierárquica que a Fraternidade
envolve, parece mais preocupado com os riscos
heterodoxos que uma libertação sempre poderá implicar.
33. Na fase final da sua obra, que se inicia com o
regresso a Portugal em 1969, e com a composição, logo no ano seguinte, do livro
Educação de Portugal, predomina já a
Liberdade, considerada, para tudo,
como a base essencial: quanto aos outros, até, e sobretudo, no amor
se tem de ter cuidado; gostar dos outros e lhes querer bem tem sido o motivo de
muita opressão e de muita morte dos espíritos que vinham para viver; é esta uma
das boas intenções de que mais está cheio o inferno; não tens essencialmente de
amar nos outros senão a liberdade, a deles e a tua; têm, pelo amor, de deixar
de ser escravos, como temos nós, pelo amor, de deixar de sermos donos do
escravo.
34. Aqui, estamos já seguramente perante um
pensador libertário. Digo libertário, e não anarquista: se a palavra an-arquia exprime, pela sua etimologia,
a negação do princípio, talvez a
Agostinho possamos então chamar acrata,
aquele que recusa a coacção do poder político.
35. E, mais do que libertário, ao seu pensamento chamaremos
talvez teolibertário, porque é um
pensamento garantido pela ideia e pela presença de Deus, que, no princípio e no
fim, na origem e como destino, é essencialmente Liberdade.
36. A meta de uma sociedade sem outro poder
político que não seja o do amor
divino exercendo-se ininterruptamente nos corações dos homens – sociedade que é
o Reino de Deus (na terra) ou o Paraíso, e que Agostinho faz corresponder à
Idade Nova ou Idade do Espírito Santo – é uma meta longínqua, porventura remota,
mas em que o filósofo acredita.
37. Poderemos assinalar três divergências
fundamentais quando confrontamos o seu pensamento libertário com uma boa parte
do anarquismo clássico: 1) a afirmação da ideia e da presença de Deus; 2) a dilacção,
no tempo, da meta ideal, só alcançável após uma longa evolução democrática (e não
com uma revolução!); 3) e a recusa do emprego de métodos violentos.
38. A respeito deste último ponto, vale a pena
referir um trecho d’As Aproximações, em
que se nega abertamente a possibilidade
de atingir um fim, a paz, a liberdade, a acracia, por um meio que lhe é
estruturalmente antagónico, a violência, a tirania, o poder.
39. Há, porém, uma convergência essencial, e de
resto muito importante: a descentralização administrativa que Agostinho da
Silva desejava para os municípios portugueses e a federação autónoma política, em
que, segundo ele, as nações ibéricas se deveriam congregar. Uns, os municípios,
e outras, as nações, seriam livres mas unos.
40. E aqui encontramos a ideia de Unidade na Liberdade, a que já Sampaio Bruno aspirava no
final do seu livro O Encoberto, ideia
que Agostinho, na Educação de Portugal,
retoma com a seguinte fórmula: a ninguém
se compelindo, mas a ninguém deixando para trás.
41. Este anseio libertário de Agostinho é
constante: atravessa as três fases de evolução do seu pensamento.
42. Lê-se n’O
Cristianismo, de 1942: No Reino não
haverá Estado, com príncipes que oprimam os cidadãos, antes cada um será,
voluntariamente, por amor e interesse do espírito, o servidor dos outros; no
Reino não haverá processos, nem tribunais, nem juízes; no Reino não haverá
senão bondade, amor, fervor espiritual, contemplação das ideias, profunda,
segura, inabalável felicidade.
43. Lê-se em Um
Fernando Pessoa, de 1959: Portugal
virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o seu
sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do
exterior para o interior, de um César para seus súbditos, dos tribunais para os
corpos, paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja inteiramente
não escrita e, no melhor de si, informulada: Reino de Deus que surja pela
transformação interior do homem.
44. Lê-se em Educação
de Portugal, de 1970: O reino que
virá é o reino daqueles que foram crucificados em todas as épocas, por todas as
políticas e por todas as ideologias, apenas porque acima de tudo amavam a
liberdade e a consideravam, não ao medo, às restrições e à força, como o grande
motor do mundo, o reino daquele Deus que viam definindo-se fundamentalmente por
não obedecer a nada e a ninguém senão à sua divina natureza; e reino que
desejam para homens que não sintam obrigação alguma que não seja a de se
aproximarem quanto possível da divindade de ser livre, livre no viver, livre no
saber, livre no criar.
45. Neste último livro, Agostinho proclama a esperança no irredutível amor da liberdade
que, à semelhança de Deus, é essência do homem.
46. A Liberdade consiste, afinal, em ser cada um
aquilo que é, mas sem nunca perder de vista o que na Educação de Portugal se afirma: o
supremo destino do homem consiste em ser santo e deus, portanto livre – pois
tem a liberdade como sua única lei esse
Deus que está sempre inventando e
sempre com uma infinita possibilidade de mais inventar, como se ainda não
tivesse inventado nada.
47. Tal como a Liberdade, a Igualdade e a
Fraternidade são princípios teológicos ou metafísicos.
48. A Fraternidade é a primeira e a mais imediata
forma de Igualdade, a forma princip(i)al da Igualdade.
49. Esta minha afirmação é garantida pela ideia,
que encontramos em Agostinho, de um Deus
transcendente Pai de todos os homens e a todos, portanto, tornando irmãos,
conforme se lê no seu livro Reflexão à
margem da Literatura Portuguesa.
50. De forma talvez mais explícita, esta ideia já se
encontrava em A Ideia de Deus, de Sampaio
Bruno, onde se afirma que todos são
filhos de Deus, e todos igualmente do amoroso coração de Deus.
51. Todavia,
estamos perante uma regra-paradoxo, uma
regra toda feita de excepções, porque aquilo que seja a Igualdade metafísica deve
ser entendido à luz da Liberdade do Deus criador na sua incessante capacidade
de individuação: todos somos excepcionais
na medida em que nos consideramos filhos de Deus – lê-se em As Aproximações.
52. Vinda da origem, esta imensa dignidade do ser humano
é proclamada em Educação de Portugal
e projecta-se na dedução dos valores morais e das regras políticas.
53. Tal como sucede com Sampaio Bruno e com Teixeira
de Pascoaes, a Igualdade, entendida como Igualdade económica, é condição da
Fraternidade. Lê-se n’As Aproximações:
não pode haver sentimentos fraternais
entre indivíduos economicamente subordinados; não pode haver sentimentos de
fraternidade entre povos dos quais um é o explorador económico e o outro o
explorado.
54. Ainda neste livro, verifica-se que Agostinho da
Silva é socialista, tanto quanto um pensador teolibertário o pode ser: a máquina socialista, porque é a melhor
máquina económica que existe, pode, portanto, servir ao catolicismo e tem este
que, tomando-o inteiramente para si, não em nome de simples considerações
racionalistas ou humanitárias, como o fazem os socialistas, mas em nome da
vontade de Deus, fazer dele um dos seus instrumentos de domínio sobre a Terra,
isto é, da sua caminhada, lenta, longa e difícil para os reinos divinos.
55. O seu socialismo vem afinal a ser o cooperativismo,
que, diz-nos ele, apesar de seus três
defeitos, o de se confundir, no nome, com o corporativismo, o de exigir governo
que o proteja dos contra-ataques do capitalismo e o de não resolver senão
insatisfatoriamente o problema das relações de empregado com empregador, é
ainda o sistema socialista mais perfeito no respeitar da natureza humana e,
talvez, no avanço para uma tecnologia de automação.
56. Esta escolha, que é afirmada na Educação de Portugal, e que a Proposição amplamente confirma, ilustra
e desenvolve, atravessa toda a sua obra. De alguma forma, nasce e cresce sob a
influência do magistério de António Sérgio, nos anos 30, e mantém-se no Brasil,
onde Agostinho, num dos artigos de As
Aproximações, considera o cooperativismo – apesar das objecções que,
lucidamente, não deixa de ponderar – como o
sistema que não apresentaria defeito algum, e que seria mesmo capaz de resolver
a antinomia da planificação da produção e da liberdade individual.
57. A referência, que há pouco encontrámos, à tecnologia de automação conduz-nos à ideia
de abundância como condição da
Igualdade, para aqui tocarmos um ponto crucial do pensamento de Agostinho da
Silva.
58. Praticamente impossível na Idade Antiga, conforme
Agostinho sublinha n’O Cristianismo,
e dificilmente concretizável na Idade Média, como resulta d’As Aproximações, a abundância material garantida
pelos sucessivos surtos tecnológicos é uma aquisição de relevo da civilização
protestante.
59. Agostinho da Silva pretendeu sempre superar esta
civilização, porque via nela uma afirmação individualista baseada na força, no
domínio, na concorrência e no lucro, e por isso mesmo hostil à ideia cristã de
Fraternidade traduzindo-se na cooperação.
60. Mas o nosso pensador reconhecia a importância
do desenvolvimento científico e tecnológico que essa civilização tinha
alcançado, e procurou pô-lo ao serviço das suas ideias. A ciência, a técnica e a
tecnologia poderiam garantir a abundância.
61. É essa abundância que, uma vez alcançada,
sustenta, por exemplo, a generosidade revelada na seguinte passagem da Educação de Portugal: a ninguém recusará a entrada e para atender
a quantos se apresentem multiplicará o número de escolas.
62. Neste ponto, torna-se notório que existe uma
dependência mútua entre a Igualdade e a Fraternidade, uma vez que esta também é
condição daquela.
63. Considera Agostinho, ainda na Educação de Portugal, que todos vamos ter que ser professores de todos
e cada um dos que sabe um pouco mais ensinará os que sabem um pouco menos.
64. E no mesmo livro propõe ainda que ensinem os alunos que mais sabem tudo o que
sabem aos que ainda o não saibam.
65. Tudo isto, no fundo, nos aparece à imagem e
semelhança daqueles homens de caridade
que, por não haver livros para todos, liam os seus e lhes acrescentavam
comentários, que também liam, de tudo isto se chamando lentes.
66. Estes homens
de caridade chegam-nos da Universidade medieval, numa época em que as condições técnicas de produção e distribuição não permitiam inteira
liberdade, como estava na intenção original da doutrina de Cristo – segundo
Agostinho nos afirma, precisamente num artigo em que fala da “Agonia e Morte da
Universidade”.
67. A Caridade, virtude cuja prática Agostinho tem
grande dificuldade em vislumbrar na civilização protestante, surge-nos assim
como o fermento e o cimento da Fraternidade.
68. Ela, a Caridade, segundo se lê em Reflexão, é o amor irrestrito que, embora consciente dos defeitos do amado, o ama
sem pensar em saldo positivo ou negativo.
69. Nunca, como aqui, Agostinho terá estado tão
próximo dos seus mestres libertários: Sampaio Bruno afirmando em A Ideia de Deus que o carácter do acto moral consiste em (…) não admitir retribuição alguma,
pois que o mesmo só é puro (isto é, só é
verdadeiramente moral) quando não recebe nada em troca; e Pascoaes lembrando, em Santo Agostinho, que um anjo é transparente ou transparência. Não
rouba luz nem espaço. Dá tudo em troca de nada e é toda ausência, no céu, a sua
presença neste mundo.
70. Vemos assim que a Caridade não é um dado
sociológico. Ela faz sobretudo apelo à noção, essencialmente individual e
religiosa, de conversão, e por isso
Agostinho da Silva nos recorda, em Um
Fernando Pessoa, que a conversão
religiosa ao Menino Jesus deve preceder a revolução social. Rememore-se o
testemunho de António Reis Marques: para Agostinho uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude.
71. A redenção não aparece, assim, como obra
exclusiva de uma Divina Providência que, intervindo pela efusão da Graça no
palco da História, garantisse o desfilar seguro das três Idades.
72. Agostinho da Silva, que é um pensador
voluntarioso, faz depender o progresso da Humanidade do exercício, pelos
homens, das três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade – e por aqui talvez
se possa explicar o tom, que eu não diria desesperado, porque a Esperança foi virtude
que ele nunca deixou de cultivar, mas pelo menos exasperado de algumas das suas
páginas.
73. Por fim, será a Fraternidade a aparecer-nos
como condição da Liberdade. E este é um ponto assente logo na Doutrina Cristã, o folheto de 1943 que o
levará à prisão, e onde se enunciam as três liberdades essenciais: a Liberdade económica, que deve aqui ser
entendida como libertação e não como liberalismo; a Liberdade de cultura (liberdade de pensamento, de criação e de expressão)
e a Liberdade de organização social
(liberalismo político). É pela conjugação concertada desta tríade que se garante
que no Reino Divino, na organização
humana mais perfeita, não haverá nenhuma restrição de cultura, nenhuma coacção
de governo, nenhuma propriedade.
74. Ora, a
tudo isto se poderá chegar gradualmente e pelo esforço fraterno de todos, conforme
se lê no final da Doutrina Cristã.
75. A liberdade de cultura e a liberdade de
organização social configuram o núcleo essencial do pensamento político de
Agostinho, que é a democracia – posta
embora em paralelo com o socialismo económico e sempre em trânsito evolutivo
para a acracia.
76. Note-se, por curiosidade, como as mesmas
ideias se encontram no Santo Agostinho
de Pascoaes: a democracia, aliada ao
trabalho, à justiça económica e à liberdade filosófica, é o regime mais humano.
77. Começando agora por insistir na ideia de que
não encontramos, no pensamento de Agostinho da Silva, um corpo de doutrina política concreto e imediatamente aplicável, quero
fazer notar que, quinze anos depois da Doutrina
Cristã, no livro Um Fernando Pessoa,
e numa perspectiva, ou prospectiva, ecuménica que será ainda desenvolvida na Educação de Portugal, o filósofo persiste
e insiste nestas ideias, ao considerar que o Portugal futuro que ele entrevê em
O Encoberto, derradeira parte da Mensagem de Fernando Pessoa, é um Portugal que se não importará com a
definição de regimes políticos, de regimes económicos ou de instituições religiosas,
porque esse será o problema de cada uma das suas unidades, só ficando, por
essência e definição do próprio conceito – Portugal, totalmente excluídas
aquelas formas institucionais que vão, como o autoritarismo político, o
liberalismo económico ou a negação do Espírito Santo, contra o que há de
estrutural no próprio homem.
78. Na recusa do autoritarismo em política está
implícita a Liberdade; na recusa do liberalismo em economia está implícita a
Igualdade; e na profissão de fé no Espírito Santo está implícita a Fraternidade,
pois se o Espírito Santo é o Amor que une o Pai ao Filho, ou aos filhos, a
estes se comunica e os torna irmãos.
79. N’As
Aproximações Agostinho refere-se à
forma de convivência superior que se expressa pela democracia, entendendo aqui
a palavra no seu sentido de possibilidade de dialogar, sem erguer a voz e
escutando e procurando entender a opinião do adversário, (…), significando
depois o submeter-se a minoria não propriamente à vitória da maioria, mas o
aceitar a dita minoria que pode ter havido no que pensa um desvio do normal
entendimento humano.
80. Nesta
passagem vai já implícita, em política, a mesma ideia de humildade que, em religião, na visão de Agostinho, caracteriza o
cristianismo, como, de resto, se comprova por uma outra passagem do mesmo
livro: o que, porém, a Igreja exige de
nós, antes de tudo, é a humildade de obedecer; e não deixa de ser curioso que
tanto se rebelem contra isto os homens que, na democracia, regime
essencialmente cristão, aceitam como parte do jogo a submissão das minorias,
simples aspecto dos absurdos a que pode levar-se separar da Igreja o poder
temporal.
81. Que a democracia seja uma etapa intermédia no caminho
para a acracia mostra-o o facto de Agostinho da Silva a considerar um regime essencialmente cristão, e sabe-se
como, para o filósofo, o cristianismo é a religião da Idade Média, e, por isso,
da Fraternidade, do mesmo modo que a religião do Espírito irá dominar a Idade
Nova, aquela em que a Liberdade plenamente se cumprirá.
82. A democracia, onde Agostinho, na esteira de
Pascoaes, concebe os partidos políticos como colaboradores e não como adversários, é uma forma já aperfeiçoada
de governação; mas o melhor regime, que será o do Reino quando ele chegar, é a
acracia, o teolibertarismo.
83. Do mesmo modo, o socialismo, com a propriedade colectiva, não é ainda o
melhor dos sistemas económicos: na Idade Nova, diz Agostinho da Silva repetidamente,
imperará a não-propriedade.
84. Continuando n’As Aproximações, importa considerar a liberdade de pensamento
religioso, com seus “Riscos Heterodoxos”, título de um escrito onde ela nos surge
problematizada assim: mas o que se não
deve esquecer é que na medida em que faz parte da Igreja, e não há ninguém que,
quer o queira quer não queira, não faça parte de uma Igreja de que é cabeça o
Pai de todos os homens, o primeiro dever seu é o de não quebrar a sua
fraternidade com a massa, fraternidade que é representada, prática e
simbolicamente, pela obediência à hierarquia, hierarquia a que todos podem ser
chamados.
85. Eis a
prevalência da Fraternidade sobre a Liberdade, bem característica do período
brasileiro, sem que Agostinho perca a noção de que o verdadeiro universalismo se deveria caracterizar pela sua recusa em
excluir os heréticos.
86. D’As
Aproximações para a Educação de
Portugal, algo muda: ecumenismo
consiste em ver todas as religiões como os vários aspectos da religião
portuguesa, e por Portugal esperemos que humana, do Espírito, que um dia, na
sua forma última e pura, abandonará todos os ritos pelo de viver a vida
graciosa, trocará todas as orações pelo perder-se em Deus.
87. A acracia em política e a não-propriedade em
economia culminam, em religião, na Idade Nova, no ecumenismo, uma não-religião
abrangendo todas as religiões institucionais para, em superior síntese católica,
as transcender pela unidade essencial do Espírito, que é Deus.
88. Ensaiando
uma correspondência das três virtudes teologais com o ternário sagrado, poderemos
relacionar a Fé com a Igualdade; a Esperança com a Liberdade; e a Caridade com a
Fraternidade.
89. Estas correspondências não são, porém,
inteiramente válidas quando consideramos o pensamento de Agostinho, visto que na
sua teoria da História a Esperança surge a par da Fraternidade na Idade Média e
a Caridade a par da Liberdade na Idade Nova.
90. A Esperança – que para Álvaro Ribeiro é a grande
virtude de quem age sem que lhe seja positivamente garantido o êxito da sua
acção – é espera na incerteza, o que, se faz plenamente sentido na
Idade Média, mal se imagina já na consumação da Idade Nova – e por isso a criança feita Deus, símbolo maior do
Reino para Agostinho, aparece valorizada, na Educação de Portugal, com que o filósofo inaugura a derradeira fase
da sua ideação, pela atenção contínua à
vida numa existência total no
presente.
91. Por amor do Futuro, e
não do presente, é a espera – e por
isso a Esperança – a que Agostinho nos exorta nas derradeiras palavras de Um Fernando Pessoa, que, com a Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa,
forma o díptico central da etapa intermédia – a brasileira – das três em que o
seu pensamento biograficamente se desenvolve.
92. Compreende-se
esta dicotomia entre o presente e o futuro, frisada a partir de obras tão
marcantes de dois sucessivos e distintos períodos da ideação agostiniana.
93. Algo
paradoxalmente, a plena, porque plenamente amorosa, vivência do presente surge ainda
como uma realidade futura; e a plena, porque plenamente amorosa, vivência do
futuro deve moldar a realidade presente. Aquela diz-se Caridade; esta
Esperança.
94. Assim,
se a Esperança vai a par da Fraternidade, a Caridade é inerente à Liberdade,
para que a chama se não apague, ideia que, logo em 1942, Agostinho, n’O Cristianismo, tornou bem explícita: no Reino não haverá senão bondade, amor,
fervor espiritual, contemplação das ideias, profunda, segura, inabalável
felicidade.
95. Reconheça-se, pois, na arquitectura do seu pensamento,
uma função basilar à Igualdade, uma função pontifícia à Fraternidade e uma
função reitora à Liberdade.
96. Esta última é a estrela, ou, falando agora
aristotelicamente, a causa final que orienta a Humanidade na sua marcha
histórica para a redenção, a proposta maior que o filósofo faz ao povo português
na sua Proposição de 1974.
97. A Liberdade é, pois, quem guia, para aqui se
empregar um verbo tão caro a Agostinho, que adrede, não raro, dele lança mão, trazendo-nos
à memória o célebre quadro alegórico de Delacroix,
que se guarda no Museu do Louvre
e que constitui um emblema da Revolução Francesa: A Liberdade Guiando o Povo.
98. Do mesmo modo, a Fraternidade, com o seu fermento
da Caridade, é a causa eficiente dessa caminhada, a que a Igualdade, que é a imposição
de uma mesma forma a várias matérias, garante a causa material e a causa
formal.
99. Tenho para mim que a grandeza de Agostinho da
Silva, O Estranhíssimo Colosso no
dizer de António Cândido Franco, estará em boa parte na façanha de uma vida vivida
à imagem da ideia com que pensou a História.
100. Agostinho, bem que o não tenha nunca afirmado,
via-se a si mesmo, e com razões para tal, como um supra-Pessoa, o que muito bem
quadra à colossal efígie que o biógrafo lhe relevou.
101. Não será por isso errado encerrar estas linhas
com algumas palavras do autor de Mensagem
que perfeitamente ilustram aquela ideia: Somos iguais no Pai, irmãos no Filho
e livres no Espírito Santo.
1 comentário:
101 pontos que constituem uma pérola para a compreensão da vida e obra de Agostinho da Silva.
De muita utilidade me serve.
Manuel João Croca
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