Pois as tardes de chuva também têm os seus encantos.
E agora no que resta da claridade, há manchas de azul rosado que as nuvens rolantes abrem, por cima das árvores, ainda verdes.
Sem escolha prévia, esta manhã, ao sair para a aula de natação da pardalada, levei um dos abecedários que o “Público” divulgou, neste caso o que tem a década de trinta do século passado por mote.
Leitura interessante que acabei enquanto esperava o corte de cabelo, a meio da tarde.
Melhor seria titular o mesmo sobre a arte dos anos trinta pois é esse, grosso modo, o objecto do volume. (1) De qualquer forma, mais uma vez ali vemos o decénio em que os totalitarismos competiram, entre si, para ganharem a batalha do convencimento das populações, coisa que nos deveria fazer pensar nos tempos que correm, em que a civilização democrática sofre ataques de todos os lados. Fica bem claro, neste livrinho despretensioso mas tão cheio de informação precisa e acessível que a derrota da democracia não implica a vitória de um mundo melhor, mas sim a organização autoritária e totalitária da vida de cada dia.
Faz todo o sentido que partamos do mesmo pressuposto de Tocqueville que identificou a democracia como o oposto da aristocracia, (2) para dessa forma isolarmos um sistema de referência que se constitui pelo modo de organização política de um estado e da sociedade que lhe corresponde, permitindo-nos compreender que um tal regime político acaba por se articular com um sistema social com a mesma certeza que, pelo modo de vida e as expressões materiais e espirituais da respetiva cultura, confluem para dar corpo a uma civilização democrática.
O que surgiu primeiro, a democracia política ou a sociedade democrática? Como é que se implicam entre si?
Se bem que considerando conceitos que se corporizam em realidades heterogéneas e, quando traduzidos em representações teóricas, necessariamente se estabelecendo em convenções sobre a realidade, estas perguntas são, precisamente, um bom ponto de partida para percebermos tanto aquelas noções como os universos concretos que reflectem e ainda como os mesmos se foram construindo ao longo dos séculos e pela combinação de contributos díspares quer no tempo como no espaço e tantas vezes tendo lugar em patamares que não estritamente os de ordem política.
Creio que resolvidos estes problemas será mais fácil estabelecermos o que entendemos por democracia ou, se quisermos, para registarmos aquilo que podemos entender por regime democrático.
Ora este começa por ser aquele que assenta por um lado na separação dos poderes e, por outro, na livre escolha dos cidadãos.
A separação dos poderes expressa-se desde logo na mútua independência entre os poderes político e judicial; o primeiro elabora e aprova as leis que o segundo supervisiona e aplica. Mas também na multiplicação e recíproco controle desses mesmos centros de poder e é assim que o executivo se distingue do legislativo, respondendo aquele perante este, ou que o poder de acusar que o Estado detém está separado do de julgar, respectivamente corporizados no Ministério Público e nos Tribunais.
O principal objectivo desta disposição é impedir a tirania, isto é, o poder de alguém ou de alguma facção, ou a imposição de um único ponto de vista, mesmo representativo de opiniões e escolhas maioritárias.
A livre escolha dos cidadãos trata-se muito simplesmente da possibilidade de eleger os dirigentes e, tacitamente, pressupondo a rotatividade da ocupação dos cargos de poder, por conseguinte, a prerrogativa de os arredar pacificamente se for essa a vontade da maioria dos eleitores.
Sempre que isto é empiricamente observável, estamos em presença de um regime democrático.
A sociedade democrática é aquela que se estrutura a partir destes princípios e que por isso mesmo faz da negociação o ponto de partida das suas instituições mais relevantes. Não é que por isso ou para isso se tenha que partir da defesa dos mais fracos. Mas a sociedade democrática só se realiza quando os mais fortes encontram sólidas barreiras que os impedem de destruir aqueles. No lar e nas ruas, nas escolas e nas empresas, nos organismos cívicos ou públicos, a sociedade democrática é aquela que tem em si os mecanismos e os equilíbrios que dão garantias aos mais fracos que, por o serem, não serão eliminados.
Se isto acontecer sistematicamente, estamos, desse modo, perante uma sociedade democrática.
Quando estes princípios e os valores que lhes subjazem são idiossincráticos em grande parte de uma dada malha demográfica; quando, por via disso, se tem como máxima que os tecidos sociais e económicos se alicerçam para que aos mais pobres assistam as oportunidades necessárias para que, sendo essa a sua vontade, possam deixar a sua condição e para que os seus filhos tenham oportunidades reais para, por sua vez, não estarem condenados à condição dos progenitores, criamos então uma civilização democrática.
Mundo melhor que este, não há.
Sábado de descanso, ora ao ritmo monocórdico de uma chuva levrinhante, ora ao compasso dos pingos na protecção metálica da varanda, tarde de brincadeira com os anjinhos que agora partilham com a mãe um qualquer programa televisivo que a todas faz gargalhar.
E eu, depois do jantar, dedicar-me-ei à preguiça de um jogo de futebol, na televisão.
Que Deus nos acompanhe a todos.
Alhos Vedros
11/10/2003
NOTAS
(1) Chassey, Éric de e Outros, ABECEDÁRIO DOS ANOS TRINTA
(2) Tocqueville, Aléxis de, DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA
CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Chassey, Éric de e Outros, ABECEDÁRIO DOS ANOS TRINTA, Tradução de Maria José Metello Seixas, Público, Lisboa, 2003
Tocqueville, Aléxis, DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA, Aviso à duodécima edição do Autor, Prefácio à edição portuguesa de João Carlos Espada, Nota do Editor, Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Revisão científica de Lívia Franco, Revisão literária de Maria João Favila Vieira Carmona, Princípia, São João do Estoril, 2002
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