Dizia o meu amigo e distinto mentalista, Dr. António Cardoso,
numa das suas lições na Sociedade Portuguesa de Naturalogia, que a nossa mente
retém com mais facilidade e durabilidade os episódios de maior originalidade,
anormalidade, ou estranheza que se nos deparam quotidianamente. Assim é! Guardo
na memória as cenas mais estapafúrdias, sem valor ou alcance futuro, ocorridas
há um ror de anos, enquanto as coisinhas comezinhas se esfumam num ápice. Já
nem me lembro do que foi ontem o meu almoço, vejam lá!
Vem isto a propósito de uma conversa que mantive há meio século
com dois jovens estudantes americanos durante animado convívio na Cidade Universitária
de Lisboa. Perguntava um deles, muito admirado, o que eram aqueles feijanitos
amarelos (little yellow beans) que os portugueses trincavam enquanto beberricavam
cerveja. A inesperada pergunta, um tanto ou quanto insólita, ficou gravada na
minha memória, pois, estava ingenuamente convencido de que, em todo o mundo, as
pessoas acompanhavam a imperial com “camarão do restolho”. Afinal era só em
Portugal e arredores!
O popular tremoço está agora na moda e não me admira que o
seu preço de venda suba exponencialmente (afinal é a ânsia do lucro que rege a
nossa sociedade demoliberal), tais são as mensagens laudatórias que de todo o
lado surgem. Talvez por isso, os amigos vêm insistindo para abordar esta
leguminosa nas minhas habituais croniquetas botânicas.
O grão seco do tremoço é venenoso. Não se espantem porque
vários alimentos que ingerimos diariamente são igualmente tóxicos. Alguns
necessitam de tratamento adequado para deixarem de o ser, mas outros nem isso.
A gente come descuidadamente o que nos põem à frente, sem ter consciência do
que ingere. Para eliminar os alcaloides nocivos do tremoço há que previamente
demolhá-lo, durante pelo menos dois dias, cozê-lo e depois passá-lo por várias
águas (processo de lixiviação). Finalmente é conservado em salmoura (água com
sal).
Os tremoços, ou melhor os tremoceiros, oriundos da Europa
meridional e norte de África, preferem solos ácidos e arenosos, inserem-se na
família das Fabaceae e pertencem ao
género lupinus. Este género engloba
cerca de 200 espécies com flores de todas as cores. Devo confessar que
inicialmente considerava o Lupinus luteus
como o mais adequado para fornecer os tremoços usados na alimentação humana.
Estava enganado! O meu amigo, Eng.º Jorge Ferreira, esclareceu que, para o
efeito, é correntemente utilizado o Lupinus
albus, (flor esbranquiçada) porque possui menos alcaloides e portanto, não
é tão amargo. De facto, no conceituado “site” americano “Plantas for a
future” aparece uma lista com os graus de comestibilidade dos vários Lupinus, classificando o luteus com o grau 3, enquanto o albus surge com o grau 4. Curiosamente considera
o mutabilis, produzido principalmente
na América do Sul, como o mais edível, com o grau 5.
Para que não haja acrescidas confusões, visto que todos têm
mais ou menos alcaloides tóxicos que é necessário anular, diremos apenas que os
tremoceiros são geralmente herbáceas anuais. Têm um sistema radicular
desenvolvido, folhas de compridos pecíolos com 5 a 9 folíolos lanceolados,
vagens oblongas ligeiramente peludas e flores formando espigas erectas. Nos
nossos campos, aparecem também espontaneamente os Lupinus angustifolius, de flores azuis, designados popularmente por
tremocilhas.
Todos os lupinus,
tal como outras leguminosas, possuem a propriedade de, através dos nódulos das
suas raízes, fixarem o azoto atmosférico transformando-o em azoto assimilável
pelas restantes plantas. Daí o seu uso como culturas de poisio, funcionando
como adubo verde para melhorar os solos aráveis. Esta tem sido, até mais ver, a
principal utilidade do tremoceiro.
Entretanto, descobriu-se que as sementes obtidas das vagens
do tremoceiro, depois de devidamente tratadas para reduzir os alcaloides (o
mais nocivo é o lupanina), possuem
uma percentagem razoável de proteína (cerca de 40%), fibra, cálcio, potássio,
fósforo, ferro, vitamina E, vitaminas do complexo B, ómega 3 e ómega 6.
São consideradas emolientes, diuréticas e cicatrizantes,
favorecendo o controlo do índice glicémico, visto que são destituídas de amido.
Podem ser redutoras do apetite para contrariar as tendências para a obesidade,
ao contrário de outros aperitivos.
A farinha de tremoço é muito usada nos países andinos para
confecionar sopas, bolachas e outros produtos alimentares.
A minha esposa especializou-se na preparação de um paté delicioso e nutritivo, já
apresentado com sucesso nos almoços sazonais da Sociedade Portuguesa de
Naturalogia, cuja receita é mais ou menos como segue:
0,5 Kg de tremoço
devidamente cozido, 1 abacate grande maduro, 1dl de azeite, e o sumo de meio
limão. Juntam-se os ingredientes e tritura-se tudo muito bem. Para que o paté
fique com a adequada consistência pastosa, pode-se juntar uma colher de sopa da
água salgada onde o tremoço foi marinado.
Servem para barrar umas tostinhas e “ficam a matar”, como
entrada, na nossa habitual ementa vegetariana, confecionada, toda ela, com
géneros de produção biológica e plantas silvestres comestíveis.
O próximo repasto de gastronomia pedagógica e de são
convívio, o Almoço da Primavera, já
está agendado para o dia 30 de abril de 2016. Inscrevam-se e apareçam!
Miguel Boieiro