ESTA CASA ESTÁ UM GELO
E pronto, mais um Natal passou e com ele estes meus dias de folga que a família passou no Porto.
Por lá, todo o ramo materno vai bem, não tanto o meu cunhado Carlos que, pelo fecho da empresa em que laborava se viu remetido para o desemprego o que, aos quarenta e oito anos de idade, é motivo para alarme justificado dada a situação um tanto embaraçosa que provocou, logo em alguém como ele que reagiu com pouca energia na busca das necessárias alternativas. De resto há notas de alegria, a começar pela Patrícia, a filha dele, com bons resultados no curso de medicina que vai entrar nos exames do terceiro ano e sem cadeiras em atraso e como parece desenhar-se uma perspectiva de trabalho a curto prazo, se bem que o comércio da mulher enfrente as consequências da descida do poder de compra na freguesia, é de esperar que tudo se componha e também eles se igualem na tranquilidade que caracteriza o dia a dia dos outros membros do clã que muitos são.
A Margarida e a Matilde estiveram no sétimo céu.
Passeios e jantares na casa da tia Fátima quanto baste, foi um ror de brincadeira com o primo Daniel, o mesmo sucedendo em casa dos avós a quem, certamente, terão perturbado o silêncio.
Lá nos acompanharam nas visitas sociais e na noite de ontem, em que tomámos café com a Tuxinha e o Carlos a quem não víamos desde há três anos, quando jantámos em casa deles precisamente por esta quadra. Dom Leonardo, sempre alegre e sorridente, também veio e, naturalmente, enquanto os pais meteram a conversa em dia, a ganilha lá esteve nos seus joguinhos. Pena que a Paula e o Zé Carlos se tenham divorciado, mas nada temos a ver com isso. Assim, só a ela vimos bem como ao André e à Catarina.
O Carlos já concluiu o Mestrado em cuja tese defendeu o uso da Astronomia no ensino da Matemática.
Parece que o serão terá continuidade no Carnaval, em Bragança.
E a Fátima e o Quim convidaram-nos para uma viagem ao Rio de Janeiro, no próximo Verão. Querem passar uns dias em Ouro Preto e contam alugar um apartamento na Barra, no mesmo condomínio em que vive o Luís, o irmão estrangeiro a quem dediquei os contos brasileiros do “Faces”.
Na tarde de sexta-feira fomos todos ao cinema para vermos “À Procura do Nemo” com a pequenada.
“-Então piolhinho, qual foi a moral da história?”
“-Que um pai faz tudo para ajudar um filho.” –Respondeu-me uma carinha sorridente que me abraçou cheia de ternura.
E a Matilde também entendeu a história e gostou.
“-Ó pai, põe o Rui Veloso.”
“-Sim! O Chico Fininho.” –Acrescentou a mais velha.
“-Chico fininho! Úu. Chico Fininho! Úu”
Lá foi a família em coro, acompanhando a versão ao vivo do último álbum do cantor.
Ai que bem sabe a despreocupação dos dias de férias.
Triste o Porto cidade que vive a vergonha de se ver urbe, a segunda do país, manietada pelos homens da bola e dos interesses que por ali se acoitam.
O centro daquela que já se auto-denominou a capital do trabalho está em buracos há uma boa mão cheia de anos, o dois mil e um cultural foi a palhaçada que se viu de que a casa da música, ainda em construção, é um exemplo hilariante e o metro que tão necessário é à qualidade de vida das populações da cidade e da área circunvizinha, terá a sua próxima estação a funcionar no estádio do Dragão cujos acessos estão acabados e foram prioritários ao que de resto a cidade precisa.
É o espelho do país que fez da organização de um torneio internacional de futebol um desígnio nacional.
E este governo já não faz coisa com coisa, antes deixa que o marfim corra.
E depois das SA na saúde que sem contarem enquanto rúbrica continuam a depender do orçamento de estado, aí vem mais uma reforma genial; permitir a exploração privada do notariado sem que nada mude nesse domínio e nos privilégios que a legislação lhe confere.
Depois do precipício há o abismo que se segue à plataforma em que aquele assenta.
E nós lá vamos, alegremente, caindo naquele.
Toca a ligar o aquecimento que a casa está gelada.
A engenharia financeira é muito bonita, sobretudo muito inteligente. O problema surge quando o capital perde a correspondência nas mercadorias produzidas; aí não há passo de mágica que nos valha e se na base das operações está aquela velha sabedoria do onde se tira e não se põe…
Pois foi isso que sucedeu com o grande grupo italiano da “Parmalat” e o resultado, como seria de esperar, foi a falência.
Até aqui, nada de que alguém esteja a salvo. Acontece é que nos escombros lá estava a caixa negra e vai daí, o diabo tirou a capa. O principal acionista e líder da multinacional meteu ao bolso quinhentos milhões de euros.
Bem, pelo menos aqui, temos uma mancha negra em que há alguém que nos bate a perna.
E este ano de má memória teria que se despedir da pior maneira.
A terra tremeu no Irão e ainda que a ira tectónica não tenha chegado aos sete graus na escala de Richter, a histórica cidade de Bam, Património da Humanidade, viu as suas velhas casas de barro ruírem e soterrarem à volta de quarenta mil pessoas.
Deus seja misericordioso com aquelas almas.
E o mundo mobilizou-se para prestar auxílio e na busca de sobreviventes.
Infelizmente, as esperanças de grandes resgates é diminuta e agora impõe-se que as feridas sarem o mais rapidamente possível e se investigue e invista numa reconstrução em que tais desastres percam o condão da fatalidade.
O natal solarengo é sempre bonito.
Os campos salpicam-se de amarelo e branco.
E o pequeno jardim dos meus sogros fica cheio da graça dos brincos-de-princesa que a brisa faz campainhar.
Lamento é a minha falta de tempo para a leitura que muito perde pelos meus afazeres profissionais e no tempo que lhes sobra, por este diário também.
Ainda assim vou fazendo o que posso e nestes dias voltei a perder-me no pensamento de Amartya Sen que nos apresenta uma perspectiva da Economia tão humanista quanto é documentada em termos do suporte teórico das suas leituras.
É um logro, pensarmos que se consegue melhorar a vida das populações ao arrepio das liberdades. São estas, precisamente, as responsáveis para que o desenvolvimento se distribua pela maior malha possível dos seus indivíduos.
Não é uma lição fantástica?
Mas já que estamos a falar de leituras que dizer de um artigo em que, depois do pedantismo do Autor em querer arvorar uma sabedoria que não tem, contando-nos história já contada e fazendo uso de um empirismo de caso único, se faz uma subtil associação entre a vontade de muitas mulheres muçulmanas usarem o véu e “(…) o poder económico da comunidade judaica.” ? (1)
Só não dá vontade de rir por sabermos que não estamos perante palavras inocentes.
Bom, mas nem tudo são tristezas.
Hoje visitámos a família da serra.
No regresso ao lar, fizemos um desvio e fomos almoçar a casa da minha tia Benita.
O convívio entre nós é sempre uma ternura que a alegria e a boa disposição tempera.
Só não vimos o Quim e o Tiago porque o trabalho os impediu.
O meu priminho preferiu interromper os estudos e agora trabalha na empresa de materiais de construção do pai. E enquanto este teve um almoço de negócios, aquele teve um camião de materiais para descarregar.
De resto estão todos bem e o Sérgio parece estar recuperado da cirurgia que fez ao joelho. Está optimista para o quarto ano de engenharia que frequenta na Universidade de Leiria.
E a nova casa do Beto está uma delícia, cheia de varandas sobre um vale a cair de verde, onde as brumas pairam nas mesclas de serpentinas onduladas.
A concepção e o desenho dos interiores estão excelentes; com as divisões do primeiro piso unidas por uma espécie de ponte, em madeira a que se acede por uma ampla escadaria no mesmo material, dificilmente conseguiriam um enquadramento mais harmonioso e cheio de luz.
Ficamos felizes por eles que bem merecem esta obra da autoria deste meu primo.
Deus lhes dê muita saúde para se gozarem de um lar tão bonito e acolhedor.
E esta tarde saiu a acusação para dez dos arguidos do caso da exploração e abuso sexual de crianças da Casa Pia.
Aí vem mais uma batalha de intoxicação informativa.
As bombas rebentarão quando e se assistirmos ao julgamento.
Esta gente já destruiu este país.
Alhos Vedros
29/12/2003
NOTA
(1) Portas, Miguel, O VÉU, p. 11
CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Gomes, Luís F. de A., FACES, Dactilografado, Alhos Vedros, 1999
Portas, Miguel, O VÉU, In “Diário de Notícias”, nº. 49217, de 26/12/2003