José Flórido
Como pretexto para uma breve reflexão sobre Krishnamurti, vou começar por me referir à controvérsia entre Salih e Rabiya, dois iluminados mestres sufis:
Como pretexto para uma breve reflexão sobre Krishnamurti, vou começar por me referir à controvérsia entre Salih e Rabiya, dois iluminados mestres sufis:
Salih dizia aos
seus discípulos (tal como Jesus também o disse) para não cessarem de
"bater à porta que alguém a viria abrir". Que significado tem
"bater à porta"? Na linguagem dos místicos "bater à porta"
significa o trabalho persistente sobre nós próprios, no sentido de procurar a
verdade. Trabalho que inclui, para além da oração e da meditação, muitas outras
atividades, como o estudo de obras filosóficas e religiosas, as palestras, as
conferências e até mesmo aquilo que costumamos designar por
"serviço".
Ora, enquanto
para Salih era indispensável "bater incessantemente à porta" a fim de
se alcançar a autorrealização, para outro grande mestre, Rabiya, tratava-se de
um procedimento completamente inútil e absurdo. "Quantas vezes precisas tu
de dizer a mesma coisa? - perguntava Rabiya. Porque estás sempre a insistir na
necessidade de "bater à porta"? Ora, a porta já está aberta. A porta
sempre esteve aberta. É portanto tolice bater a uma porta que já está
aberta."
Dois mestres
iluminados. Duas opiniões contrárias. Qual deles tinha razão?
À primeira vista,
não parece plausível que dois mestres da dimensão de Salih e de Rabiya
estivessem em total contradição. Quem estaria certo? De acordo com a nossa
lógica, um deles, deveria estar errado. Se Salih considerava que era necessário
"bater incessantemente à porta" e Rabiya dizia o contrário, afirmando
que a porta sempre estivera aberta, não podiam estar, ambos, certos. Um deles
estava, com certeza, errado. Mas, não será possível um outro ponto de vista?
Não será possível estar para além do "certo" e do "errado"
e admitir que os dois pudessem ter razão?
Rabiya tinha
razão porque, de facto, a porta está e esteve sempre aberta. Mas Salih também
tinha razão em querer que os seus discípulos não cessassem de bater à porta: É
que o comum das pessoas não percebe que a "porta está e esteve sempre
aberta". Por isso, precisam de bater muitas vezes à porta. Não para que a
venham abrir, mas, para que, um dia, se possam aperceber de que a porta esteve
sempre aberta. Então, talvez exclamem, surpreendidos: "Olha...afinal, a
porta estava aberta! Porque estive eu, então, a bater, durante tantos anos, à
porta? Bastava um simples empurrão...
Cheguei agora ao
ponto que pretendia: Haverá alguma relação entre Krishnamurti e aquilo que se
acabou de dizer? Penso que sim. Por isso, cito uma afirmação por ele feita,
numa das suas conferências, relativamente ao processo de busca da verdade:
"Em geral, "buscamos", porque nos sentimos muito confusos. Mas
com a mente nova, em cada instante, nunca estamos a buscar. A ideia de
"buscar e achareis" é, para mim, totalmente absurda". E, mais
adiante, numa referência à meditação, declara: "A meditação é importante,
mas não o "como" meditar, não a prática da meditação, não a maneira
de manter certas visões que são infantilidades que, infelizmente, foram
exportadas do Oriente para o Ocidente."
Pelo exposto, se
vê que, tanto para Krishnamurti como para o mestre sufi Rabiya, é absurdo o
processo de busca, que consiste em "bater a uma porta que está sempre
aberta". Todas as técnicas, assim como a relação mestre-discípulo são
inúteis para Krishnamurti. Mas, será mesmo assim em todas as circunstâncias?
Porque razão Krishnamurti é hostil em relação às técnicas? É que condenar as
técnicas também é uma técnica. Podemos chamar-lhe a "técnica da
não-técnica". E Krishnamurti não foi o primeiro a usar esta técnica da
"não-técnica". Bodhidharma, que introduziu o budismo Chan (ouZen) na
China também a aplicou. Aliás, esta ausência de técnicas é uma característica
do Zen. E Krishnamurti está muito próximo do Zen.
Tudo o que Krishnamurti
diz é estritamente verdade. Contudo, o que ele revela não é compreendido pela
generalidade das pessoas que têm assistido às suas conferências, porque quem o
quer ouvir vai à procura de uma resposta para as suas inquietações. Vai à
procura de um "como". E essa resposta nunca é dada por Krishnamurti.
Esse "como" é sempre recusado.
Neste aspeto,
Buda foi explícito: "Quando alguém quer atravessar um rio, serve-se de um
barco. Mas, depois de chegar à outra margem, não vai andar com o barco às costas".
Trata-se, evidentemente, de uma alegoria: O barco representa os meios, ou
técnicas, de que nos servimos para alcançar a autorrealização. Mas, logo que
esse objetivo é alcançado (a outra margem do rio), o barco (as técnicas) deixa
de ser necessário. A diferença entre o ponto de vista de Buda e o de
Krishnamurti consiste no facto do primeiro reconhecer a necessidade do
"barco" antes de se alcançar a outra margem, enquanto Krishnamurti
recusa, pura e simplesmente, a necessidade do "barco", em qualquer
circunstância. Todos devem atravessar o rio a nado.
Krishnamurti é,
provavelmente, alguém que já está na outra margem. Alguém que fala a linguagem
dos "despertos", mas que, talvez, não disponha, ou não queira dispor,
de uma corda para puxar os outros. Ora, no estado em que se encontram a quase
totalidade das pessoas, a "corda" é necessária, o "barco" é
necessário, as técnicas são necessárias. É preciso portanto não cessar de
"bater à porta", como disseram Salih e Jesus, para que, um dia, se
possa perceber aquilo que Rabiya e Krishnamurti afirmaram, ainda que de modo
diferente: A porta está e esteve sempre aberta.
in, José Flórido - TEXTOS ( http://joseflorido.weebly.com/textos )
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