sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Uma Festa


Paulo Borges


             Uma festa elegante ao fim do dia num terraço de Lisboa sobre o rio. Serviram uma bebida e uns aperitivos. E depois algo mais forte. O conhecimento de que somos uma consciência que, ao aprofundar a mínima percepção, pode chegar a tudo. Instaurou-se um silêncio estranho. O silêncio estranho de quem começa a ver e a sentir. A experimentar o que é realmente estar vivo.

Uns sentiram que nas suas veias corria o sangue das crianças de Aleppo e ele borbotou-lhes dos olhos em lágrimas, tingindo de rubro os guardanapos dos acepipes. Outros viram-se cheios de escamas e barbatanas, penas e pêlos, a nadar e a correr livres e ao mesmo tempo a ser capturados, dilacerados e cozinhados para acabarem devorados por si mesmos nos rissóis e croquetes que haviam acabado de ingerir. Foi-lhes revelado o gosto da própria carne, delicioso e horrível. Uns sentiram as carteiras em convulsões nos bolsos. Puxaram delas e cada nota e cartão de crédito imediatamente lhes incendiou as mãos com toda a ganância, corrupção, violência e roubo do mundo. Correram em todas as direcções como loucos, a urrar de dor, com os euros e os cartões tanto mais colados às mãos a arder quanto mais os tentavam deitar fora. Outros viram que não tinham pele e que desde sempre eram tudo, o céu, a terra, as vidas e as estrelas. Tiveram vergonha de até esse momento terem achado que amavam. Houve quem se sentisse a nascer em todos os partos e a morrer em todas as agonias. Houve quem visse por todo o lado que não havia lado algum. E até houve quem...

Não se sabe até hoje o paradeiro de muitos dos convivas. Uns desapareceram para sempre naquele mesmo instante. Outros morreram de causa desconhecida. Uns ficaram para ali a chorar e a rir convulsivamente. Outros ficaram mudos de espanto para sempre. Alguns saíram a correr a beijar e abraçar todas as pessoas e coisas e outros a pedir perdão a tudo e todos. Vários regressaram serenamente a casa como se nada houvesse acontecido. Os que foram mais fundo. São os mais perigosos. Jamais alguém saberá quem são, de onde vêm e para onde vão.

É desta festa que nos conhecemos, leitor?

2 comentários:

Dores disse...

Com toda a certeza que não.

luis santos disse...


Muito Bom.
A parte final da Festa lembra-me aquela do Pessoa dos "cadávares adiados que procriam".
E Abraço.