terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

FACES

ÁFRICAS
Para o
Guilherme e o grito do Mindelo
pela vida e a dignidade

HASSAN


Vim a saber, posteriormente, ao longo de uma conversa de várias horas entre Marrakesh e Agadir, Hassan é filho de pastores e camponeses berberes, obrigados, por um terratenente oriundo de Casablanca, a recuarem do planalto fértil subsequente a Meknes para as terras semi-desérticas mais próximas à primeira daquelas cidades.
Ainda cresceu, já com aquele andar de lentidão e carnes balofando, passadas de chinela no trote de quem tem de correr atrás das cabras e do Cheou, o nome atribuído por seu pai ao dromedário familiar, à frente do qual ambos se dirigiam orgulhosos para o souk, a fim de procederem à troca dos víveres excedentes ao auto-consumo. Ali, na casa rectangular de adobe cor-de-rosa e no jardim imediato ao poço, sob a protecção de um morro rochoso apontado às nuvens rolantes, aprendeu o necessário e o fundamental à sobrevivência de um homem.
E a feliz casualidade do facto de ter aprendido a ler e a escrever a língua árabe com um mullay de uma aldeia próxima, salvou-o de uma vida incerta quando, aos doze anos, se viu obrigado a viver sob a protecção de um tio materno, pequeno comerciante estabelecido na capital da província.
O seu pai fora um homem corajoso que soube transmitir-lhe esse legado e que após a morte do filho mais velho, por via da desgraça, fora forçado a abandonar o amanho das terras e procurar outros meios para melhorar os réditos e a alimentação do que, apesar de todas as vicissitudes, no íntimo, desejava viesse a ser um novo clã. Apesar de não ter conseguido impedir a morte de outro rapaz e de se ter ficado por um trio feminino e apenas um macho, não descurou a demanda da maior riqueza possível para que todos desfrutassem de uma vida farta e segura. Mas acabou preso, por esfaquear o primogénito daquele que lhe arrematara toda aquela superfície salpicada de piteiras e palmeiras e outra vegetação de arbustos e árvores de clima quente. A mãe e as irmãs que jamais tiveram notícias do prisioneiro, aceitaram o amparo de uma cunhada e ele levou consigo uma revolta silenciosa e uma obstinação férrea de vir a ser alguém, aquilo que, no seu entendimento, se definia por ter uma individualidade, criar e educar a descendência, partilhar tal missão com a mulher e viver de um trabalho sério e limpo, bem remunerado e prestigiante.
“-Podermos descansar no mês de férias junto ao mar e viver numa casa com todas as condições e quarto para mim e a mulher, um para os rapazes e outro para as raparigas. Se assim puder proporcionar-lhes a aprendizagem de uma boa profissão acho que ficaria satisfeito.” –Disse-me ele num francês fluente, fruto de um curso de aperfeiçoamento, a concluir, assim o esperava, no Inverno seguinte, numa escola de línguas na cidade de Ingrid e Bogart.
Foi esse o objectivo secreto que o levou a trocar as tarefas na loja do tio pelo emprego de ajudante e moço de recados num hotel, por volta dos seus catorze anos de idade. Decidira então aprender numa escola pública e concluíra os preliminares necessários à entrada num curso de hotelaria.
Quando o conheci tinha vinte anos e há três que trabalhava como ajudante em autocarros de excursões turísticas. Era uma ocupação decente e com as gorjetas acabava por ser bem remunerado. Hassan estava confiante e contava vir a ser guia turístico, diplomado e competente, etapa que esperava cumprir com êxito graças ao pecúlio amealhado e que ainda lhe proporcionaria uma entrada confortável na carreira almejada.

Conheci-o como consequência de ter seguido a sugestão de duas professoras residentes na margem sul e pessoas das minhas relações que, por mera casualidade, encontrei a banhos em Agadir, onde, apesar de inesperadas instabilidades do tempo atmosférico, em algumas matinas, pela força da névoa, capazes de impedir os rituais balneares, os baixos preços dos alojamentos relativamente luxuosos concorrem vantajosamente com outros lugares igualmente debruçados sobre a ressaca.
Aconselharam-me um circuito turístico que, ponderadas as limitações do tempo e das opções pelos lugares a visitar, possibilitar-me-ia, na opinião delas, um primeiro correr a face pelos marroquinos e o reino de Marrocos.
“-Depois até ficam mais à vontade para alugarem um carro e darem uma volta por vossa conta e risco.” –Disse uma delas, referindo-se à minha mulher.
Ajustados os trâmites devidos com o guia de uma agência de viagens que trabalhava com a estância hoteleira em que estávamos hospedados, dois dias depois, iríamos percorrer um périplo de mais ou menos dois mil quilómetros que ligaria uma sequência de umas quantas cidades, ditas, imperiais.
O Hassan era o ajudante do condutor, um autêntico assistente de bordo que, para além de contar os excursionistas e carregar e arrumar o malame, ainda mantinha o veículo impecavelmente limpo, ali dormindo, no estreito corredor, sobre colchão improvisado, justamente para zelar pela segurança de tudo o que ali permanecesse à sua guarda.
Reparei nele pela atenção com que desempenhava as suas funções e até mesmo a importância com que, aparentemente, se auto-presenteava, dormitando um pouco ao longo dos percursos morosos e extensivamente trepidantes. Calado e olhos testemunhando a obstinação de quem procura cumprir rápida e eficazmente uma acção, não escondia certa circunspecção, diga-se em sua defesa, razoavelmente discreta.
A curiosidade avolumou-se logo após a primeira e, praticamente que eu tenha registado, uma das poucas intervenções que teve nos diálogos com os turistas portugueses que ali viajavam em bancos perto do seu, entre os quais me encontrava.
Duas moças, uma senhora e uma jovem dos seus vinte e tantos anos, discutiam qualquer coisa, estando uma das mais novas a ser questionada pela sua recusa em perder tempo a discutir os preços dos vendedores.
“-Que desperdício.” –Argumentava, soletrante mas segura de si. “-Delapidando o meu rico tempinho para ver a Medina com um mínimo de atenção e pelos meus próprios olhos.”
O ajudante sorriu e, espontaneamente, falou. Percebeu-se e ele depois veio a confirmá-lo, por via das muitas jornadas que já levava com tais gentes, conseguia entender um pouquinho de português.
“-Freedom.” –Disse, repentina e inesperadamente, mostrando o contraste entre a branca dentição e a sua tez carregadamente moura. “-Elle a besoin de liberté.”

Agadir, 17 de Agosto de 1991

9 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Gostei muito de ler o teu relato de viagem, tanto que o assinava de boa vontade.

O (teu) Hassan e o (meu) Ahmed que me acompanhou na viagem por Marrakesh, podem ser a mesma pessoa... Até podia ter sido um dos mil disfarces do xeque Ahmed Ismail Hassan Yassin, lider político e religioso, fundador do Hamas...

O motorista do nosso autocarro era também o ajudante de motorista, o guia turístico, o homem que se impunha, quando alguma senhora mais preconceituosa, se mostrava incomodada com os miúdos que nos seguiam para vender as suas preciosidades e já estavam à nossa espera em cada paragem do autocarro! Sem GPS! Israelitas e americanos têm muito que aprender!

Aquilo a que eu nunca me habituei foi às suas paragens inesperadas para fazer as suas orações. Já conhecia (e já esqueci!) de cor o ritual. Do que julgo lembrar-me é que, por azar, ou por brincadeira de Alá, isso acontecia nos sítios mais desérticos e sufocantes do nosso passeio.

Gostava de lá voltar. Insh'Allah!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Vejo que o Hassan ganha carne e vida real pelo teu reconhecimento. Com efeito, concordo que ele é bem um dos rostos que por ali vivem a luta diária por uma vida digna. E sem me querer pôr em bico de pés, tenho até para mim que há um pouco de Hassan naqueles protestos que pela televisão vi na Tunísia e a verdade é que ao inventá-lo, pela impressão que se me ia formulando do país através das pessoas com quem contactei, quis fazê-lo com um pequeno toque de esperança.

É o que eu mais aprecio na literatura e o que em ela procuro, a invenção de mundos que me permitam continuar na minha procura de entender o mundo.

Aquele abraço companheiro
Luís

Amélia Oliveira disse...

Enquanto decido se viajo ou não para casa este fim-de-semana dei mais uma espreitadela ao 'Faces'. E fiquei cheia de vontade de ir conhecer o 'teu' Hassan ou o 'Ahmed' do António! Acho interessante que tenhas chamado 'Faces' a estas tuas crónicas - são, de facto, os rostos que mais nos ficam na memória quando viajamos e sãoas pessoas que nos dão a conhecer os lugares,não são? Porque lugares sem pessoas são simplesmente espaços e é das conversas com os Hassans e os Ahmmeds que apreendemos -e aprendemos- os locais onde nos encontramos! Marrocos será, provavelmente, a minha próxima viagem (soon, I hope!)- se por lá encontrar o Hassan digo-lhe que já tinha 'ouvido falar' dele! Et oui, tout le monde a besoin de liberté!

Amélia Oliveira disse...

J'ai oublié: Au revoir!
Amélia

Luís F. de A. Gomes disse...

Olá, Amélia

É isso mesmo, são as pessoas que nos podem dar a conhecer os locais pois, afinal, são elas que são os narradores dos lugares e das sociedades e é através delas que podemos caracterizar tanto uns como as outras; a cultura de uma população materializa-se na maneira de viver dessa mesma população, tal como dizes, não existe em abstracto e ainda que possamos estudá-la através de modelos conceptuais – não há alternativa a isso – e, nessa dimensão fazer uso da abstracção para as estudar e entender, a verdade é que na descrição das mesmas é incontornável que nos detenhamos na(s) sua(s) realidade(s), no concreto da(s) sua(s) prática(s) quotidianas e as pessoas são o melhor ponto de referência para o fazer. E por isso escolhi o nome que escolhi – em inglês, como explico no último conto, se assim lhe posso chamar.

Mas também escolhi esta forma por uma outra razão que tem a ver com a procura da diferença em relação ao que já está feito. Se considerarmos aquilo que é normal nos chamados livros de viagens, aquilo que verificamos é a preferência pelas descrições dos lugares e opiniões mais ou menos pessoais e sempre unilaterais dos sítios em causa, isto é, a(s) leitura(s) que o escritor faz daqueles lugares e culturas. Ora, para meu gosto, por um lado tenho muitas dúvidas quanto a essas opiniões unilaterais – raramente chegam a passar disso mesmo, opiniões, por melhor e mais bem conseguidas e fundamentadas que o sejam – vulgarmente incapazes de se materializarem em peças literárias minimamente interessantes e, por outro lado, pretendendo levar à prática algo de diferente, a dada altura cheguei à conclusão que seria preferível este caminho que escolhi, procurar dar uma imagem dos locais através das pessoas que lhes dão vida, na medida em que, tanto quanto sou capaz de avaliar, não é frequente que os livros de viagens se façam desse modo. Espero ter conseguido esse objectivo.

Marrocos é de facto um país muitíssimo interessante que vale a pena conhecer e o mais curioso é que estando geograficamente tão perto, está cultural e civilizacionalmente tão distante. Há uma beleza tão singular na geologia do Atlas – descê-lo, em direcção ao Sul, é uma viagem inesquecível – e uma Humanidade tão diversificada na sua geografia humana que, uma vez cruzada com a razoável segurança com que podemos circular, fazem dele um dos locais de eleição para que o simples turista possa ser confrontado e, dentro do possível, experienciar aquilo a que numa certa Antropologia se chama de choque cultural. É um destino a não perder.

Fico satisfeito por teres conhecido o Hassan; quer isso dizer que o mesmo tem vida para lá do livro o que é, para mim, o mais importante. Com efeito, sou da opinião que à literatura importa inventar mundos, para que a partir deles – de preferência sem que o Autor imponha uma qualquer moral a quem quer que seja – possa o Leitor reflectir sobre esta espécie tão curiosa como é a nossa.

Au revoir
Luís

Luís F. de A. Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís F. de A. Gomes disse...

Só mais uma coisinha, tem a ver com a necessidade de liberdade que culmina a história.
Será que a liberdade, entendida enquanto possibilidade de alguém traçar e seguir um caminho na vida, está presente nas culturas onde o Islão é dominante? Será que a liberdade, até mesmo o sentido de justiça, são valores unicamente ocidentais e não exequíveis com outras culturas e civilizações? Perguntas que convido o Leitor a fazer e que – a história data de 1991 – se na altura as tomava como pertinentes, ainda mais assim as considero nestes tempos cinzentos que correm.

Bom fim-de-semana,
Luís

Amélia Oliveira disse...

Só um pequeno apontamento a propósito de Liberdade - de todos os países que visitei aquele onde me senti menos livre foram os Estados Unidos onde, inclusivamente, passei por algumas situações bastante caricatas que jamais esquecerei. Talvez das mais caricatas de todas fossem os cartazes no aeroporto de San Diego que diziam simplesmente NO JOKES! E a dificuldade que tive em passar com um instrumento musical só porque se chamava 'Rain Stick' (aparentemente objectos que incluissem a palavra Stick não deveriam passar!!! No dia do ataque às Torres Gémeas encontrava-me em Cambridge, muito perto de uma Base Aérea Norte Americana e nem mesmo aí e nessa situação senti a minha liberdade individual ameaçada. A liberdade desta nossa cultura ocidental também tem muito que se lhe diga... Aliás, poder-se-à falar de liberdade a quem vive com 500 euros por mês? Liberdade de quê? De expressão, talvez, mas e que mais???

Bom fim-de-semana!
Amélia

Luís F. de A. Gomes disse...

É precisamente esse género de perguntas pertunbantes que pretendi - pretendo - espoletar com esta história. Muito haveria a dizer sobre isso e na "Comunidade...", daqui a muitos anos - na história e portanto daqui a muitos capítulos no texto - em contexto que penso como bastante apropriado, a narradora irá fazer exactamente a pergunta que colocas, ainda que por outras palavras. Na verdade, se a liberdade é um conceito, o mesmo tem tradução prática e portanto é em termos sociais que podemos - devemos - verificar se a mesma existe ou não, se ela é mesmo real ou não. Nessa dimensão, faz todo o sentido perguntar se famílias com esse nível de rendimentos, em sociedades como a nossa, são capazes de deixar a tal possibilidade de escolher aos seus filhos. É uma questão de primordial importância; tem decorrências teóricas decisivas se quisermos ver alargado o espaço de liberdade das pessoas mais simples.

Por razões que não importa que aqui abordar, a liberdade é para mim a única condição concebível para o ser humano e essa percepção é idiossincrática. Ter a possibilidade de escolher um caminho na vida é decisivo para que uma pessoa veja respeitada a dignidade com que nasce e, para mim, esse é o princípio de vida que assiste a qualquer indivíduo só pelo simples facto de ter nascido. Isto para mim é inquestionável e é esse o norte que deve dar sentido à vida de qualquer sociedade humano, de qualquer grupo humano. Sempre ressalvando que tenho consciência uma coisa, igualmente simples, a recusa de qualquer solução final, a aceitação da ideia que temos um mundo perfeito, seja de que maneira for, a construir. É cada pessoa quem poderá desenvolver a auto-consciência de não inter-agir com os outros fora daquilo que poderemos considerar um comportamento ético e é precisamente por isso que, em termos teóricos, faz igualmente todo o sentido reflictamos a liberdade enquanto condição social em que se materializa. Enfim, temos aqui uma longa e interessante conversa.

Nunca estive nos Estados Unidos da América pelo que nada poderei dizer a esse respeito.

Renovo os votos,

Luís