terça-feira, 29 de maio de 2012

FRESCOS

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Do ponto de vista literário e no que concerne à obra que em tal âmbito tenho vindo a lavrar, o ano de dois mil e onze foi uma verdadeira viagem no tempo. Havendo escrito os últimos contos da trilogia dedicada à Margem Sul, passei então à compilação desse terceiro volume, o que me levou a ter que rever e transcrever histórias que no limite iam à distância de uma vintena de anos. Pois a esse mergulho no passado, seguiu-se outro ainda mais profundo. Decidido a levar em frente, neste bonito espaço de liberdade, aquilo que considero a minha apresentação enquanto escritor, tomei por boa a ideia de dar a conhecer a primeira vertente desse meu labor que consistiu num projecto que vim a assinar como Luciano França e que elaborei no decurso da minha licenciatura que terminei no princípio da juventude. Trata-se de material que ficara adormecido nas caixas de arquivo e que, praticamente desde a sua conclusão e, logo então, de uma primeira tentativa de ordenamento, abandonara sem qualquer ponderação séria. Três décadas mais tarde em relação aos primeiros textos e um bom quarto de século após esse arquivamento, é natural que a memória do que tinha feito se tivesse esvaído e que ao tentar escolher o material que mais se adequasse a ser dado à estampa neste sítio, eu me tivesse deparado com a impossibilidade de efectuar uma opção criteriosa sem que antes me desse ao esforço de rever todas aquelas folhas soltas em que registara todo aquele conjunto de peças. Assim, estando então disponível por ter concluído um volume de contos e, com ele, o próprio projecto Sebastião Sorumenho de que faz parte, lancei-me nesta tarefa de trabalhar aqueles papéis e de lhes oferecer o olhar analítico que nunca lhes dispensara para, com isso, finalmente os distribuir pelas unidades em que se dividem. Sem o esperar, vi-me dessa maneira transposto para o pretérito dos começos da minha vida de adulto e desta minha solitária aventura pelos meandros das letras e do pensamento. A este respeito, devo confessar o muito que me agradou ter ido ao encontro de todo esse vivido distante.

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Comecei a escrever por graça, depois ganhei-lhe o gosto. Tinha onze anos de idade quando, por influência de alguém que não mais voltei a ver e de quem não mais tive notícias, me saiu um poema que naturalmente partilhei e pelo qual recebi elogios e incentivos que me levaram a repetir a gracinha e novamente me proporcionaram a satisfação pela curiosidade de me ver lido e compreendido pelos adultos do núcleo familiar e de amigos que comigo conversavam a esse respeito. Por isso fui lavrando o domínio da poesia nos anos seguintes, ao ponto de compilar um volume que ofertei a meu pai, no Natal de setenta e três, estava então próximo de completar as quinze Primaveras, no mês seguinte. Nesse entrementes percebera o quanto gostava de me sentar perante uma folha em branco e deixar que o pensamento aí desenhasse as letras e as palavras que davam corpo às peças em que expressava o que pretendia dizer, até que percebi ter-se instalado esse hábito, verificação que me levou a pensar em aventurar-me em outros campos, a meu ver mais difíceis, de que o romance foi a primeira experiência. Obviamente, jamais passei de pastiches, tanto em esse como nos trabalhos que seguiram, mas a verdade é que ao momento de me decidir por um caminho para a vida de adulto, dei por mim a verificar ser a escrita a única actividade que regularmente repetira desde a puberdade meã. A perplexidade instalou-se ao perceber que era a única coisa que fazia por gosto. De parte estava a ideia ou vontade de vir a procurar transformar-me em profissional em tal área. Antes de tudo por sentir não ter a coragem suficiente para o tentar. Não estava certo de aí reunir os meios que me permitissem manter a vida abastada e culturalmente rica que os meus pais me haviam propiciado e tinha fundamentados receios de não me mostrar à altura das circunstâncias que essa opção implicaria e vir-me a sentir frustrado e infeliz, com isso correndo o risco de me ver bloqueado em termos criativos. No entanto assaltava-me a intuição que iria escrever ao longo da minha vida, pois a inquietação esmagava-me sempre que o não fazia e, cumulativamente, por compreender que era essa a forma que melhor dominava para ir construindo o meu entendimento do mundo. Era pois a esse monólogo interior que eu não queria resistir, muito pelo contrário, era ele que eu sabia que, de uma maneira ou outra, queria continuar e aprofundar na alternativa de passar pelo sofrimento da confusão perante o mundo envolvente e a vida que levava. Ricos são aqueles que nos seus dias encontram um amigo e eu posso dizer que tive essa sorte. Foram aquelas dúvidas e preocupações que eu fui formulando nas longas conversas que mantive com a Anabela Diogo e no decurso das quais fui aclareando as minhas ideias e amadurecendo decisões. Mais ainda, foi a ela que escutei opiniões que não só me pareceram avisadas, como cheias de potencialidades para o futuro do que pudesse vir a ser o meu percurso literário. Era sua leitura que eu necessitava de um bom capital de vivências, preferencialmente para lá da redoma socialmente protegida em que sempre tinha vivido. Muito mais que pelas personagens e até mesmo pelas histórias que por essa via poderia vir a conceber, a importância estava no que seguramente me habilitaria para olhar o humano e com ele ficcionar. Por consequência disso, ambos concluímos o quanto seria bom o avolumar dos conhecimentos para saber ordenar tais experiências e delas tirar partido e rapidamente concluímos que, para tanto, nada mais profícuo que uma boa passagem por estudos universitários. Ora como tinha médias que o permitiam, foi assim que decidi começar por estudar Antropologia o que levei muitíssimo a sério.

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Foi pois no contexto da minha licenciatura em Antropologia que surgiu este projecto que assinei como Luciano França. Houve uma outra decisão que eu tomei por essa altura, a de abandonar tudo o que escrevera até essa data. Sentindo o apelo da escrita, para mim era evidente que seria um desperdício se não lhe desse uma resposta séria, isto é, se não me propusesse a escrever algo sólido que, muito prosaicamente, não viesse a envergonhar-me. Afinal, era para isso que me candidatara a seguir estudos superiores e teria que ser para isso que, também a partir daí, eu me iria preparar. Seria esse o trabalho que me interessaria e, para o almejar, não me queria sentir condicionado pelo que anteriormente escrevera. Mas a entrada na Universidade colocava-me perante um dilema; levar o curso a peito e procurar preparar-me o melhor possível e por consequência adquirir o máximo de conhecimentos ou, durante esses anos, lançar-me de corpo e alma na criação literária. Pesando as alternativas, se num primeiro passo estabeleci que muito dificilmente conseguiria bons resultados se a ambas me dedicasse com igual afinco e, sobretudo, em igualdade no plano das prioridades, logo me ficou claro que poderia muito bem compatibilizá-las entre si, respeitando, inclusivamente, o maior grau de importância que à primeira deveria atribuir. Por outras palavras, seria perfeitamente plausível que eu viesse a obter bons resultados com os estudos, ao mesmo tempo que poderia dar início ao trilho da criação literária. Assim surgiu o projecto Luciano França. Eu sabia que no quinquénio que tinha pela frente, não encontraria disponibilidade mental para me largar em águas mais profundas, como o são, por exemplo, aquelas que um romance requer. Nem isso me pareceu uma desvantagem impeditiva, na medida em que nem sentia então o traquejo para o tentar dentro dos novos critérios de exigência que me impusera, ainda que nas férias grandes de oitenta e três me tenha saído espontaneamente um esboço que vim a usar mais tarde para um dos romances de Sebastião Sorumenho. Fosse como fosse, no princípio do Verão em que matriculei no Instituto Superior, percebi que se não iria ter espaço para esses trabalhos que seguramente requereriam mais tempo e um acompanhamento mais cuidado, não era por isso que deixava de ser incontornável a necessidade de continuar a escrever, até pela simples razão de manter e reforçar o hábito de o fazer. Surgiu-me então a ideia que poderia harmonizar as pretensões em causa, se me limitasse a obrigar-me à disciplina de escrever todos os dias, mesmo se acabasse por me cingir à mais modesta das frases. Daí a minha decisão de elaborar um projecto de escrita automática, de acordo com o qual, chegasse a que horas chegasse e como chegasse a casa, eu me sentaria à secretária e botaria para o papel o que viesse à cabeça nesse momento. Desde logo me pareceu ser esse o melhor modo de atingir os meus objectivos, com a certeza de estar a fazer algo que se enquadraria numa das tradições literárias que é o surrealismo.

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Da aplicação desses princípios produzi tudo aquilo que é o espólio de Luciano França. Foram anos intensos esses, em que dediquei o melhor das minhas forças e capacidades aos estudos antropológicos e durante os quais percorri alguns empregos que me asseguraram a subsistência e me pagaram as despesas académicas, mas durante os quais também fiz algumas viagens e até campanhas de trabalhos nos campos, à época no âmbito das colheitas. E nunca me esqueci de andar apetrechado com papel e lápis bastantes para continuar o exercício auto-imposto de registar as ideias que me ocorriam, surgissem elas sob a forma dos toscos poemas que fui escrevendo, ou apenas na de sequência de palavras que ia articulando sem quaisquer preocupações de sentido ou significado. Quando em Agosto de oitenta e cinco escrevi uma novela – “A Angústia de Laura” – com que decidi inaugurar o projecto Sebastião Sorumenho e, com ele, a actividade ficcional que me interessava vir a fazer e em que, de facto, pretendia vir a navegar no mar da literatura, não só dei por findo Luciano França, como simultaneamente dei conta do quanto este era vasto em número e diversificado nas temáticas que aí poderia encontrar. Passados todos estes anos e tomando o conjunto no seu todo, independentemente da reduzida qualidade que certamente terá, tenho que vê-lo e classifica-lo como uma obra à parte de tudo aquilo que vim a produzir posteriormente. Antes de mais, por ser a minha passagem pela complexidade do universo poético, pois não mais voltei ao género com um carácter sistemático e metódico e qualquer das poesias que desde então me aconteceram, em nada obedeceram aos requisitos e propósitos de um projecto de escrita automática. Mais importante que isso, tudo o que se lhe seguiu foi elaborado exactamente ao contrário de tais pressupostos, na medida em que se trataram de construções que partiram de reflexões e escolhas profundas sobre aquilo que queria fazer. Contudo, não deixa de ser por isso que Luciano França continuará a marcar o princípio da minha vida de escritor e, a não haver outra razão, por essa, jamais poderá deixar de ser considerado se quisermos entender todo o caminho que tenho vindo a palmilhar na literatura ao longo de toda a minha vida de adulto. Será então uma das catorze compilações que reuni em tal projecto que lhes apresentarei a partir daqui. Não porque a tome como a mais representativa ou a melhor do conjunto, mas apenas por a ver como a que mais se adequa a ser publicada num espaço como este. Olhando agora para trás e avaliando Luciano França no global da minha produção, não tenho como reivindicar para ela valias de qualidade e muito menos de inovação, ainda que o tenha colocado na sequência de uma tradição criativa, o surrealismo e dele possa dizer que, do ponto de vista formal, se insere no que de mais moderno se tem feito na poesia contemporânea. No patamar do interesse para a obra que tenho produzido, vejo-o essencialmente como um período de treino, aprendizagem e experimentação. Na verdade, foi aí que ganhei hábitos e disciplina de escrita e, paralelamente, não apenas avolumei conhecimentos, como desenvolvi a criatividade no plano da linguagem metafórica e de outras técnicas de expressão escrita. Sem prejuízo do que acabei de escrever, interessa que o querido Leitor possa dispor dos materiais relevantes para que lhe seja dada a possibilidade de avaliar o meu trabalho e, em concomitância, traçar uma primeira ideia do que tem sido o meu percurso nesta ousadia de querer elaborar uma obra literária. Contudo, como não lhe reconheço uma qualidade bastante que justificasse, só por si, a sua publicação neste espaço e para que ao querido Leitor não defraude, no tempo que tão generosamente me concede, acompanharei esta apresentação poética com a do meu último romance, acabado em dois mil e dez e que titulei “A Comunidade do Vale da Esperança – Uma Crónica”. Assim e até que o primeiro deles termine, oferecer-lhes-ei estes dois trabalhos ao longo das muitas terças-feiras que, a partir de hoje, se seguirão pelo que, desde já, deixo o voto para que sejam do vosso agrado. Bem hajam todos aqueles que façam a crítica do que os meus parcos talentos têm conseguido.

Luís F. de A. Gomes
Tavira/Alhos Vedros, 17 e 24 de Fevereiro e 4 de Março de 2012

1 comentário:

A.Tapadinhas disse...

Não há dúvida que a juventude é eterna!

Pelo menos a tua: Os planos de que nos dás conta, nas tuas aventuras literárias, são alicerçados em planos muito concretos, diria mesmo, como se a tua licenciatura em Antropologia tivesse uma costela de arquitectura.

Vamos assistir então, cada Terça-feira, à colocação dum tijolo na obra que se vai desenrolando perante os nossos olhos!

Que as Terças-feiras não faltem! Melhor: Que chovam Terças-feiras!

Abraço,
António