terça-feira, 15 de maio de 2012

A mercantilização das relações humanas na seara espírita

Dia após dia, convivo com isso e percebo o crescimento do fenômeno da mercantilização das relações do ser humano consigo mesmo e com as demais pessoas, de tal maneira que os trejeitos, os condicionamentos instaurados no mercado de trabalho, na contemporaneidade, adentram não só o solo frio das empresas privadas, mas também das organizações públicas e das instituições sociais – a família, a escola, os ambientes religiosos. 

Não tenho a pretensão de esgotar todos os temas acima assinalados, uma vez que este texto tem a finalidade de expor minhas reflexões sobre aspectos da convivência no movimento espírita que mais têm me gerado preocupação, no bojo da mercantilização das relações humanas.

No que toca ao ideal cristão, a casa espírita se reveste da finalidade de proporcionar ambiente de convivência fraterna, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento do potencial humano para o bem, para o amor e a solidariedade, características da formação humana, tão importantes para a aquisição de virtudes, tais como o respeito ao próximo, a amizade autêntica, a afeição sincera, a empatia e a assistência real diante das necessidades. 

A despeito desse nobre propósito de que estão imbuídas as fraternidades espíritas, noto, nos dias atuais, a infiltração, na seara do movimento espírita, da competição desenfreada, da pouca consideração fraterna e incondicional, da patrulha ideológica, da disputa evolutiva, de variadas condutas que desembocam no mesmo resultado: exclusão e opressão.

O que chamo de competição desenfreada? A casa espírita, ao longo do tempo, como reflexo de seus integrantes, é uma caixa de ressonância das mudanças e transformações por que passa a humanidade, absorvendo padrões de comportamento tanto benfazejos quanto deletérios. Nessa segunda categoria, enquadra-se a concorrência velada entre parcela de confrades espíritas pelo título social do “mais virtuoso”, do “mais evoluído”, do “mais produtivo” em esvaziar o umbral, a vaidade inconfessa de se exibir na condição de humilde obreiro a quem foram repassadas as informações mais recentes ou bombásticas sobre os bastidores do plano espiritual e a disputa entre os seus pares pela posição de trabalhador espírita mais operoso em zelar pela pureza doutrinária e pela deferência aos dirigentes espíritas de maior influência política no centro ou na federação a que se filiam.

Os fenômenos de grande expressão no ambiente espírita, a exemplo da hierarquização por competências (dando-se primazia, em uma espécie de pirâmide hierárquica, aos médiuns considerados mais valorosos e aos dirigentes ditos mais preparados), somada ao grande volume de orientações espirituais e de outras formas de assistência extrafísica, conferem a algumas pessoas, no âmbito da militância espírita, o poder de mando e de persuasão que, embora pudesse ser meio de agregar valores e aprendizados coletivos, é desviado para a manutenção da exclusão de muitos confrades que não se enquadram no estereótipo de obreiros produtivos, alegres e dóceis.

Por vezes, no afã de serem notáveis artífices da libertação em massa de Espíritos aprisionados em masmorras das trevas onde colaboraram, de forma exemplar, com os preparativos para a transmigração planetária de obsessores que atuam em nível planetário, esquecem-se muitos trabalhadores espíritas de também voltarem seus olhos para companheiros de seara kardequiana, que, encarnados neste mundo de provas e expiações, estão à espera somente de um rastro de luz, isto é, de uma palavra fraterna, de pequenos gestos de empatia e compaixão, para que possam enfrentar, com coragem, os desafios da vida terrena. 

Nesse processo de deslumbramento com missões de salvamento de Espíritos desencarnados e com o enfrentamento das trevas na erraticidade, valorosos membros da comunidade espírita ignoram o sofrimento e a dor daqueles que estão em seu entorno, na esfera dos encarnados: infelizmente, ao invés de não deixarem a candeia embaixo do alqueire, muitos dos militantes espíritas se evadem de seus deveres morais em relação a seus irmãos encarnados e contribuem para o esvaecimento (verdadeiro “apagão”) da luz interior em muitos irmãos. 

Em uma comunidade, dentro da sociedade atual, todos, homens e mulheres, estão sujeitos a variadas vicissitudes, visto que fazem parte de um ecossistema ainda inserido em contexto de mundo de provas e expiações, extensivas a todos os seus componentes, tanto encarnados quanto desencarnados. 

Em outras palavras, é importante conciliar o socorro aos irmãos e às irmãs no plano espiritual em condições enfermiças com o amparo a encarnados e a encarnadas partícipes do meio espírita que, igualmente, necessitam de cuidadosa assistência e, muitas vezes, são deixados em segundo plano.

Quantos, entre nós, não são encarnados enfermos a pedir socorro, no cotidiano, e, como vozes não visíveis, são negligenciados pela vaidade humana, que se ufana em priorizar o atendimento a irmãos que se encontram no outro plano existencial da vida?

Nas experiências cotidianas, embora atravessadas por inúmeras tarefas, que nos colocam como servidores de uma rotina humana na Terra, ainda assim somos convidados a refazer nosso modo de ser, inclusive a nossa postura em relação a nossos companheiros e companheiras (encarnados e desencarnados) de lida espírita e de outros segmentos da vida em sociedade.

Não acredito que todos os esforços estejam condenados à perdição da pessoa em si mesma. 

Acredito e tenho esperança na capacidade humana, porque sei que ainda somos aprendizes para o saber que nos contemplará como portadores de uma real humanidade. 

A formação de nossas capacidades, por meio do afeto e do desenrolar dessa afetividade, muito contribuirá para que o medo e a desconfiança cedam lugar às relações transformadoras e educativas. 

Que a formação de grupos afins sirva de ânimo para a continuidade do espírito cristão com que um dia fomos contagiados e que, como semente, pede luz, pede o alimento, para ter força e romper a terra dura de nossos corações. 

A casa espírita, respeitando a sua condição humana, tem grandes chances de não se tornar mais uma ruína arquitetônica da experiência religiosa em nossa plurissecular caminhada evolutiva. Basta que os seus arquitetos, os seus responsáveis, os seus frequentadores instalem em seu seio os fragmentos do cuidado entre si e com todos. 

Não fiquemos só preocupados com o resgate de irmãos que já se encontram em condições de desencarnados. 

Não deixemos à margem aqueles que lutaram para adentrar as portas da comunidade espírita e que precisam construir ou reconstruir a sua fé sólida, o seu afeto por si mesmos e pelo demais e que não encontram amparo em outras instituições humanas atuais. 

Que o poder seja o poder de direcionar a vaidade e o orgulho para a construção do acolhimento e da compreensão de que todos precisamos, sob a premissa de que todos estamos a trilhar o caminho da evolução em condições árduas, próprias do mundo de provas e expiações no qual habitamos. 

Não existe mediunidade melhor ou pior: existe mediunidade com Cristo e sem o Cristo. 

Não me recordo, na história do Mestre, de nenhum comportamento excludente por esse ou aquele motivo. Todos que o procuravam tinham a mesma atenção e respeito, recebiam aquilo de que necessitavam e Jesus sabia ouvir e compreender cada pedido. Que possamos desenvolver a capacidade de ouvir sem julgamentos, de exercitar a suspensão de juízos e valores na condução e assistência de todos os homens e mulheres. 

Ouvir é acolher! Ouvir é se colocar à disposição do outro sem subserviência nem dominação. Permita a si mesmo caminhar com os seus irmãos e crescer sempre. Não se esqueça de que a única verdadeira ameaça que pode surgir em seu percurso de vida é a ameaça que nasce dentro de você. Aprenda a se conhecer, saindo da própria concha existencial, abrindo-se à coexistência fraterna com todos, homens e mulheres, encarnados e desencarnados, quer tenham afinidade com seus ideais e visão de mundo, quer comunguem de ideologia e valores diversos, com os quais, inclusive, em razão da diversidade, podemos nos enriquecer como pessoa e nos desenvolver como Espíritos imortais.

  
FERNANDA LEITE BIÃO 
Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil) 

A autora é psicóloga e orientadora profissional em Belo Horizonte. Mestranda em Educação Tecnológica (CEFET-MG). 

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