António Justo
No Natal Deus desce à terra,
torna-se carne/terra. Depois vem a Páscoa a apontar para a vida como via-sacra
em que a Cruz se torna símbolo da existência que é feita de morte e de
ressurreição. No Pentecostes completa-se o ciclo vital em que a natureza
através da pessoa humana ergue os olhos da terra para o alto, para o céu, no
reconhecimento de que o Homem é feito de terra e céu. Proximidade e distância
são partes integrantes da pessoa. As fronteiras do homem e do seu biótopo não
se deixam definir pelo horizonte que o nosso olhar permite. Há o longe, o
distante que chama e tudo move para lá dos nossos limites sensoriais. O longe
só é perceptível aos olhos do coração.
O Pentecostes inicia a
capacidade de respirar um ar invisível que tudo suporta. A experiência da luz
(línguas de fogo que vêm do alto) afasta o medo e possibilita a aventura
criativa e criadora. Cada ser fica cheio de luz, grávido de Deus. O problema é
a crusta, o limite (identificador) que o envolve e leva a afirmar o limite
contra o universal integrador. O Paráclito é a essência comum ao particular e
ao todo; ele é o nós do eu e do tu, à imagem do eu (Pai) e do tu (Filho JC)
que, em relação íntima, cria o terceiro, o nós (Espírito). Por isso a
celebração do Pentecostes anda ligada à festa da Trindade. Ireneu de Lyon
condensou a Trindade na frase seguinte: «O Pai é complacente e ordena, o filho
obra e forma, o Espírito nutre e incrementa». Segundo a filosofia cristã o ser
humano está chamado a ser parceiro divino da criação à imagem do JC na filiação
divina. A relação criador-criatura faz do cristianismo um monoteísmo mitigado.
Assim, não chega correr com
os outros; cristianismo é mais que compromisso, é ser margem e rio ao mesmo
tempo, espírito e matéria em reconciliação. Na metáfora da realidade que a
natureza oferece, no ciclo da água que na sua essência inclui, ao mesmo tempo,
os estados sólido, líquido e gasoso, pode pressentir-se a essência do nosso ser:
mudança e permanência, espírito e matéria, igual e diferente. O mesmo somos nós
a nível de indivíduo e de eclésia. O Paráclito é um desafio à solidariedade e
conciliação dos elementos, à capacidade de adaptação contínua ao novo, porque
só assim permanecemos nós, não podendo ser reduzidos a mero leito onde a vida
passa.
O espírito tem uma relação
céptica perante o leito mas sem ele faltar-lhe-ia o seu fundamento para poder
ser fluxo. A existência é feita de perguntas e respostas em contínua
interacção. Parar numa pergunta ou numa resposta seria negar a vida; por isso o
Espírito fala em várias línguas, também a tua e a minha. O espírito flui onde e
como quer. Importante é a abertura e não a incrustação de vida em preconceitos
teorias ou dogmas, como se a verdade e a realidade fosse apenas sólida. Se a
afirmarmos como sólida ela é líquida e se a afirmarmos líquida ela é gasosa,
sim porque a questão está na nossa visão de perspectiva que é selectiva e não
inclusiva.
Pentecostes é também
celebrado como o aniversário do nascimento da Igreja como comunidade com a
missão de viver e levar a Boa Nova à humanidade e de a viver em comunhão com a
natureza. Pentecostes vem do grego e significa o “quinquagésimo dia depois” da
Páscoa; o Espírito germina na pessoa e na comunidade fazendo deles agentes com
a capacidade de falar muitas línguas, a linguagem do amor que é percebida nas
mais diversas paragens independentemente de raças e culturas.
Cinquenta dias após a “perda”
do JC, a tristeza dos discípulos é compensada pela descoberta dele na pessoa e
na comunidade na vivência do Espírito; agora a presença de Deus na Humanidade
passa a ser cada pessoa, cada cristão que aja no espírito e consciência do JC
que resume o espírito e a matéria.
A Comunidade eclesial é
aberta a todos os povos (idiomas) não se impondo uma cultura sobre a outra
sendo seu característico distintivo a ágape, a caritas, o amor. O que a torre
de Babel dispersou antes, congrega agora o Paráclito envolvendo tudo no fogo do
amor. O característico cristão é a relação e inter-relação pessoal expressa na
relação do JC com a natureza-Pai e Espírito. Ao contrário doutras religiões,
aqui, a norma é uma pessoa e não um livro e a ética não se reduz a uma
subjugação, ao cumprimento de letras (leis) mas ao amor soberano que tudo
diviniza. O ser humano na qualidade de filho de Deus pertence por natureza à
família mais nobre, tornando anti-humana e ilegítima toda a prepotência,
subserviência e opressão; estas constituiriam um atentado à dignidade
humano-divina inerente a cada pessoa. Por isso, os ministérios públicos, as
autoridades públicas, ministros, etc., deveriam exercer actividades de serviço
às pessoas porque toda a dignidade vem e acaba nela em comunhão com o toso.
A festa do Pentecostes é
celebrada em toda a Igreja desde o Concílio de Elvira do ano 305. Com a descida
do Espírito Santo, o dia eterno do Pentecostes torna-se o domingo dos domingos,
o sábado dos sábados em que a acção divina se manifesta e realiza no e com o
povo no mundo. A participação no Espírito Santo confere o dom das línguas e os
dons do espírito. O ciclo litúrgico quer apontar para a realidade profunda que
é o mistério da vida que é toda ela relação.
Ultrapassa-se a visão grega
da vida da relação de sujeito-objecto passando toda a relação humana-divina-natural
a ser uma relação de sujeitos entre sujeitos; isto é passa-se duma
consciência de relação sujeito-objecto para uma relação sujeito-sujeito que
tudo personaliza e dignifica. A verdade passa a ser um acontecer e não um mero
constructo abstracto ou anónimo. Como no ciclo da vida, a palavra de Deus (o
Verbo) está na origem da vida tal como o fruto, a flor, a árvore e se encontram
já na semente.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e publicista
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