terça-feira, 24 de julho de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


As casas estão de pé. Ainda não sabemos se haveremos de demarcar os quintais com muros ou sebes ou qualquer outro tipo de vedações em madeira ou não. É o que falta para que os espaços de cada um estejam completos e considerarmos este primeiro problema definitivamente encerrado. Contudo, vemos agora o aspecto que terá a paisagem desta nossa comunidade e ainda que alguns tenham sugerido que no futuro teremos que embelezar com ajardinamento e fontanário e até com algo alusivo ao empreendimento, em si, o que se fez uma espécie de largo de acesso à ladeira onde se acavalitam os brancos das fachadas e o baço alaranjado dos telhados, é possível perceber como será a aldeia resultante desta combinação deste novel casario com os edifícios pré-existentes. Não há quem não esteja satisfeito com os resultados, quer no que diz respeito às condições de habitabilidade que conseguimos para cada uma das famílias, quer no tocante ao enquadramento estético que o produto final deixa transparecer. O senhor Abel não se cansa de se dar a admirar o efeito da obra e fez questão de se erguer da cama a tempo de ver o Sol raiar sobre as telhas que mais próximas estão do alto da colina. Brevemente poderemos gozar o requinte de uma casa só para nós e eu já sinto o frenesim da alegria de conceber como iremos instalar e decorar os interiores. Vou pedir ao paizinho que me ofereça duas ou três telas das que costuma pintar para que possamos ornamentar as paredes. Estou tão, tão contente. Sinto-me feliz. Mas ainda vamos ter que esperar pelo princípio do Outono para procedermos a mais esta mudança e finalmente podermos abrir e eliminar os caixotes que trazem os tarecos e enxovais de cada casal. Organiza quem sabe e no dizer dos que, entre nós, são entendidos na matéria, é preciso deixar passar o tempo para que as casas sequem, creio ser assim que se diz, para o que, o período de uma estação, não sendo o ideal, parece ser um tempo minimamente suficiente. Façamos votos para que este Verão seja quente. Seja como for, ainda ontem comemorámos o evento e fizemos da fogueira de Santo António o corolário de uma festa que teve início num jantar para que convidámos aqueles que aqui trabalharam connosco e as respectivas famílias. O ajudante do carpinteiro que fez as portas e as janelas e os armários das cozinhas, deixou escapar a má ideia que fazia a nosso respeito e que se esfumou, disse-o no entredentes desta confissão, ao ponto de o levar a admitir que até gostaria de aqui viver. Pudera… Afinal, ele acabou por ver o que, pelo seu entender, costumam ser pertenças de ricos. Cheias de luz e arejadas, com divisões amplas e assoalhadas, todas apetrechadas com cozinhas e casas de banho, uma no piso térreo e outra com tudo preparado para o vir a ser se as necessidades determinarem o aproveitamento das águas furtadas que já ficaram prontas para virem a ter os quartos da filharada, são três as divisões, por ora em tijolo, para o efeito e ainda espaço para uma casa de jantar ao lado da cozinha, uma ampla sala de estar na entrada, de onde se abrem as portas do nosso quarto de dormir e de uma divisão mais pequena onde contamos fazer um escritório e a nossa biblioteca particular. Para quem vive ao monte em casebres, deparar-se com o simples facto de haver água encanada e ver tudo a preceito para vir a receber o abastecimento eléctrico, não me custa muito compreender que se ache perante a mansão de um qualquer senhor. Aqui os Invernos são frios, avisou o José Pedro para quem o termos calafetado bem as portas e janelas será crucial para o conforto que haveremos de sentir no interior, quando as temperaturas cá fora se aproximarem do zero. E isso ainda mais impressionou o rapaz que viu a novidade de vidros duplos no janelame que o nosso amigo trouxe das suas estadias na Alemanha, como mais um toque de um requinte de todo inimaginável. Para nós, tudo isso se traduz por um elemento que ajuda a materializar um horizonte de esperança. Tanto mais que nos preparamos para começar a tirar os primeiros rendimentos da propriedade e com isso a darmos o arranque propriamente dito deste modo de vida que escolhemos. Nós temos condições excepcionais e agora compreendo a insistência do José Pedro que, em face das hesitações e objecções dos que procurava arregimentar, assegurava que muito embora tivéssemos pela frente trabalho árduo e restrições, a par de sacrifícios e privações que dificilmente seríamos capazes de imaginar, sem que isso deixasse de ser assim, tudo apontava para que o projecto pudesse vir a ser levado a bom porto, pois de modo algum se poderia argumentar ser ele um sonhador, quando partíamos com todas as condições para da terra tirarmos ganhos que, no limite do pouco ou nada querermos fazer, dariam para conseguirmos uma vida minimamente confortável. Pois agora vejo que assim é. Para a semana vamos começar a extrair a cortiça das árvores que iremos vender às fábricas da região e dos concelhos em frente a Lisboa, o que nos deixará uma receita que, segundo os cálculos daqueles que são mais expeditos nestas coisas da economia, nos permitirá não só garantir um rendimento aceitável para cada um, isto para aliviar aqueles que aqui chegaram com as menores reservas e que, no caso da família do senhor Abel, pode acarretar alguma aflição, mas também nos possibilitará o bastante para amortizarmos metade da dívida que todos contraímos com o José Pedro e até comprar um tractor e algumas alfaias agrícolas. E com os mais ou menos cento e vinte hectares repletos de sobreiral que possuímos, temos a garantia de todos os anos termos à disposição uma renda semelhante. As bases do nosso futuro estão assim lançadas e tudo leva a crer que poderemos manter uma certa tranquilidade perante o mesmo.
As pessoas são mesmo más. O paizinho é um verdadeiro optimista para quem a natureza humana é intrinsecamente boa e a que apenas as vicissitudes de um mundo de injustiças é susceptível de alterar no sentido da maldade. Eu não sei se será dessa forma e temos assistido a tamanhas desgraças nos tempos que correm que não me é difícil pôr em dúvida esse ponto de vista. Depois há aqueles sentimentos muito próprios de cada pessoa, como a inveja ou o rancor que o meu querido pai, por ser alguém desapossado de maus instintos ou ansiedades incompreendidas, não costuma considerar quando reflecte sobre estes assuntos. Mas tenho para mim que ele se engana e que, ao contrário, é a maldade ela própria que é capaz de ser inerente à natureza humana. Nós somos naturalmente egoístas, trazemos connosco um instinto de sobrevivência que nos leva a que em primeiríssimo lugar pensemos em nós e na defesa daquilo que possamos considerar os nossos interesses. E num mundo como aquele em que vivemos em que cada um depende de si, não só essa característica tem chão com fartura para se tornar mais visível, como ainda para adquirir um peso maior do que seria desejável. É isso que abre as portas à maldade que, tantas vezes e em tantos e tantos casos, leva tanta gente a rejubilar com o mal do próximo, chegando ao cúmulo de encontrar mais satisfação pela infelicidade alheia do que aquela que poderiam sentir pela sua própria felicidade. E quando a isso se associa a ignorância, temos normalmente os piores desfechos. No que pessoalmente me diz respeito, em parte é a isso que aqui quero fugir. De outra forma, como entender o que, segundo o carpinteiro e o ajudante que, entre aqueles a quem contratámos o trabalho, foram os que mais privaram connosco, se dizia e seguramente continua a dizer-se nos lugares de conversa da Vila, onde é voz corrente que somos um bando de desavergonhados e gente perversa que vive na promiscuidade e, quando se trata de mexericos entre beatas, no pecado. Nem vou aqui entrar em detalhes e pormenores porque são tão ofensivos e sórdidos que, só de pensar neles, fico sem saber se me encho de espanto ou de raiva. Mas é assim a vida e a massa humana com que afinal temos que lidar. Felizmente não me parece que daí possam advir consequências de maior para esta paz em que queremos viver e isso chega e sobra para que não precisemos nada mais que um simples encolher de ombros para resposta. Não é o próprio povo quem diz que vozes de burro não chegam ao céu?
Agora tenho que dormir, mas era bom que o Manuel ainda estivesse acordado.

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

As vozes de burro não chegam ao céu, mas até Deus precisa de interlocutores...

...sob pena de ficar a falar sozinho!

Às vezes os burros são tantos!Einstein disse que burrice é repetir, interminavelmente, o mesmo processo, à espera de um resultado diferente.

Estou a lembrar-me dos resultados das nossas eleições...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Provavelmente, foi a pensar nas palavras do Sábio que este pessoal decidiu fazer algo diferente naquele ano em que o mundo parecia condenado a uma morte em vida. Vamos a ver no que deu.

As nossas eleições... As nossas eleições... Bem, será que as nossas eleições são mesmo eleições livres? Ora aqui está uma pergunta que até pode parecer parva - os Vascos e outras luminárias deste mundo assim sentenciarão, certamente - mas, provavelmente abrirá as portas a uma conversa que nos pode levar a outros lugares de entendimento. Que forma tem a democracia numa população de favelados? Será que gera mesmo o poder do povo? E como fazer para que, em tais condições, isso possa vir a ser possível?
Perguntas, perguntas inocentes e que aos olhos dos poderosos, daqueles tiram partido destas democracias a seu favor, como mecanismo da apropriação - imoral - da riqueza que fazem, acabam por ser apodadas de demagógicas quando não, se for caso disso, subversivas.

Aquele abraço, companheiro
Luís