terça-feira, 31 de julho de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


O Verão está a chegar ao fim mas esteve chochinho, provavelmente como estes tempos que passam, cheios de nuvens negras e incertezas na curvatura dos dias. O mundo continua doido, envolvido numa guerra de demência que se algum sinal dá de querer parar, esse é o pior que se poderia desejar ou não estivesse a Alemanha hitleriana expandindo o seu poderio e o seu domínio avassalador e bestial sobre outros povos que, pelos ecos que nos chegam e as tragédias que vamos conseguindo apurar nas entrelinhas do que é permitido escrever, trata de modo desumano e brutal. Agora foi a vez da Rússia soçobrar perante aquela máquina de destruição e morte e fica assim derrubada a última barreira que, no continente, lhe poderia fazer frente. Não há pois quem os possa deter e o Félix que passou uns dias em Lisboa para dar uma mãozinha a umas quantas famílias de refugiados, algumas das quais com vontade de permanecerem no nosso país, a maioria com o manifesto propósito de estar em trânsito para os Estados Unidos da América, voltou a trazer-nos relatos de populações deslocadas e escravizadas e de um manto de repressão que, mesmo para nós que todos os dias vivemos no medo dos olhos e ouvidos da polícia política, é difícil de imaginar. Quanto aos judeus diz-se que continuam a ser mortos aos milhares e este nosso amigo falou de denúncias secretas de matanças em plena rua numa zona ocupada da União Soviética. Resta a Inglaterra, isolada na sua ilha e à mercê dos ataques e das bombas da aviação alemã e mesmo esse imenso império parece enfraquecido com a derrocada que os japoneses lhe têm imposto na Ásia. Oxalá consigamos ficar a salvo de todo este inferno, se bem que a negra noite que se abateu pelo continente europeu se estenda necessariamente para nos preencher o horizonte com todo o horror das suas trevas. E até parece que o estio respondeu com um calor arredio de manhãs nublentas e tardes frescas e com muito poucos momentos de suores suplicantes por uma sombra. É certo que a lezíria, lá em baixo, floresceu como sempre deverá ter acontecido e dos vermelhos das papoilas, aos azuis arroxeados das bocas de lobo, aqui e ali ilhados por tufos amarelos e brancos dos malmequeres, as cores espalharam-se pelas ladeiras dos caminhos e das planuras em pousio e mais para cima, no montado, a neve das estevas voltou a salpicar o verdume do matagal que só agora começa a acastanhar. Ao meio-dia a quietude esteve de facto entregue à tagarelice das cigarras e no escuro mais uma vez se deu o regresso dos toques de pífaros que só os grilos sabem fazer e as oratórias das rãs quando à procura do acasalamento. Mas houve muita água derramada pelas nuvens e se bem que as poças tenham secado, a terra nunca teve aquela secura que leva o torrão a desfazer-se em grãos de areia. Em perfeito contraste está a nossa alegria, de tal maneira ao rubro que acabou por ser suficiente para compensar a timidez da canícula em que não houve uma única noite em que tivesse apetecido dormir ao relento. Quando eu era miúda gostava bastante dos Invernos. Era tão bom estar em casa e escutar os uivos do vento nas arestas e o gotejar das chuvas sobre o parapeito das janelas. Quando a minha mãe punha o braseiro na sala onde costumava dar-se aos seus bordados e leituras e o ar aquecido se instalava e embaciava os vidros, passava por mim uma sensação de aconchego e segurança tão agradáveis que me lembro de imaginar como seria belo se aquela calma acolhedora pudesse durar para sempre. É mais ou menos isso que sinto neste recanto do mundo onde o amanhã se está florindo prenhe de pétalas de esperança. Acabámos de realizar os nossos primeiros proventos e o saldo superou as nossas melhores expectativas. Vendemos a cortiça e também a azeitona do extenso olival de que dispomos e a verdade é que em vez de um, temos agora três tractores com que amanhámos as terras que pretendemos searar e com que deixámos os trabalhadores rurais das vizinhanças de boca aberta e olhos arregalados. Até eu aprendi a dirigir a máquina e sobre ela passei horas e horas de solavancos que me desfizeram os músculos dos braços e das pernas e me atiraram para a cama em transe nas regiões lombares. Teve a contrapartida de sonos de pedra mal o lençol se pousava sobre o formato do corpo. Mas o varejo das ramadas carregadas de brincos acastanhados e negros, esse ainda mais me prostrou em fins de tarde em que só as obrigações do alimento, a mim e a todos, arrancava ao anseio do repouso. Vá lá que escapámos ao tórrido de uma soleira mais rigorosa. Nem tudo foram rosas e, neste caso, os espinhos foram as decisões que, pela primeira vez desde que aqui estamos, saíram de uma unanimidade prevalecente para se fundamentarem na autoridade de um voto de maioria. Deu para ver que há filosofias contraditórias na abordagem do modo como pretendemos organizar a vida aqui, entre nós. Foi pacífica a aplicação de boa parte dos réditos no pagamento ao José Pedro que ainda ficou com metade do que colocou à disposição de todos por receber e não sofreu qualquer contestação todo o investimento que efectuámos em maquinaria, bem como o montante que pusemos de parte para reforçarmos e aumentarmos a represa que se estende no baixio do vale sobre o qual se debruça o casario onde habitamos. Já o pouco que afectámos para dividir entre todos foi objecto de acalorada discussão e foi aí que os pontos de vista pautaram pela divergência. Na opinião do Rui Aranda e, como não seria de estranhar da Teresa, a sua mulher, a que se juntaram uns primos do José Pedro de quem eu nunca consegui decorar os nomes e um empertigado que tem a mania que sabe tudo e está constantemente armado em chefe e a dar ordens e opiniões sobre tudo e mais alguma coisa, o Raul que estava para ser professor de liceu, ainda que desta vez aceitassem que a divisão da renda se fizesse de maneira equitativa, até por nenhum deles ter sido capaz de explicar como poderíamos medir os contributos de cada um, de modo a determinar aqueles que tinham sido mais e menos relevantes, propunham para o futuro uma solução que passasse por uma espécie de assalariamento de acordo com o labor desempenhado por cada um de nós. Não gostei mesmo nada como deixaram pairar a insinuação que não poderíamos comparar a importância do seu esforço com, por exemplo, o da dona Noémia, a mulher do senhor Abel que, na sua surdez àquela eloquência balofa, não acusou o remoque. Mas eu não gostei e ainda estive para lhes devolver uma alfinetada, embora tenha acabado por preferir o silêncio que desdramatiza aquilo que, se calhar, até nem tem qualquer significado que valha a pena considerar. Opôs-se desde logo o Félix que, por sua vez, admitindo que na realidade seria mesmo uma certeza que aconteceriam contribuições mais importantes que outras e que os empenhos de cada um não estivessem todos ao mesmo nível e que portanto houvesse mais entusiasmo nuns que noutros, ainda assim defendeu que, pesadas bem as coisas, essas não seriam com toda a certeza diferenças substanciais pelo que a repartição equitativa dos ganhos seria justa e a melhor maneira de conferirmos um espírito solidário e fraterno às relações que, entre nós, aqui pretendemos construir. E como muito bem acrescentou o Quico, afinal não podemos estar aqui com os mesmos pressupostos individualistas, para não dizer egoístas que até me parece o termo mais adequado, em que se alicerça o mundo que, em última instância, ao embarcarmos nesta aventura, quisemos deixar para trás. Foi esta posição que recolheu o apreço da maioria. Como é óbvio, foi este o sentido do meu apoio.
Em Agosto recebemos a visita dos meus queridos pais, até ao momento, os únicos que aqui vieram para nos ver e passar uns dias connosco. Sem o menor laivo de vaidade, sinto um inconfessável orgulho por isso. O paizinho foi uma simpatia e em vez do par que lhe pedi, ofereceu-nos meia dúzia de telas, entre elas aquela que sempre foi a da minha preferência, uma falésia batida pelas ondas que me impressiona pela luminosidade que transmite e a misteriosa sensação que as gaivotas estão mesmo voando em brincadeiras sobre a espuma brilhante. A mãezinha é que não se cansou de fazer perguntas sobre tudo o que viu e o que achou que deveria ver ou ter visto. Talvez por se satisfazer com as respostas, lá partiu sorridente e tranquila, toda ela transbordante de felicitações e votos para que tudo nos corra a contento. O meu pai, esse, sempre parco no transparecer dos sentimentos quando fora da intimidade, conferiu a seriedade do beneplácito na confidência com que fez acompanhar o beijo de despedida, ao dizer-me o quanto estava feliz por mim.

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