Aos amigos uma estória da
Bahia
Rugendas- Custumes do Rio
de Janeiro
Desde que da nau capitânia cabralina
gritou-se “ Terra à vista” que estas terras tropicais foram motivo de interesse
e curiosidade por parte dos europeus. Franceses, holandeses, ingleses,
espanhóis, além é claro dos seus descobridores oficiais, os portugueses,
chegaram a estas paragens em busca de aventura e riquezas.
Seguindo o rastro de seus patrícios
antecessores, o escritor Charles Expilly,
por motivos indefinidos, resolveu se estabelecer no Brasil e ao mesmo
tempo fazer um trabalho de pesquisa sobre o país e sua gente. Mais que relatar
o que viu, o francês deu sua opinião “civilizada” sobre os luso-brasileiros e
seus bárbaros costumes. Mesmo não tendo êxito integral no seu projeto, fez uma
bela descrição da natureza e dos episódios por que passou, ou ouviu contar,
usando cores fortes e palavras bem colocadas, tornando viva a história.
Num dos seus relatos, contou-nos o que se
passou com uma jovem da Terra. Apesar de
estar apaixonada por Agostinho, Brígida, de família fidalga empobrecida, escolheu para casar Manuel Rebentão, um tosco e velho traficante
de negros escravos, porém um dos homens mais ricos de São Jorge de Ilhéus.
Após o casamento, o casal foi morar numa
vasta e confortável propriedade junto à praia, entre São Jorge e Olivença. Manuel fazia de tudo para impressionar a
mulher e a sociedade local com suas extravagantes despesas. Dava festas
exóticas, comprava produtos estrangeiros, encomendava roupas da moda, vindas de
Paris, para a mulher. Não se cansava de
mostrar o quanto o seu poder financeiro podia materialmente adquirir e ofuscar
a sua origem.
Quando chegou a São Jorge de Ihéus um
refinado o piano Érard, foi um alarde geral. Vaidoso, o comprador, Manuel
Rebentão, programou uma grande festa para exibir o renomado instrumento. Iria
tocá-lo, para deleite dos convivas, a sua jovem esposa. Dentre os convidados
estava o jovem músico e vizinho de fazenda
Sr. Agostinho, antigo namorado de Brígida.
Os preparativos corriam céleres. A
visível ansiedade de Brígida não passou desapercebida ao marido, que
julgou ser pelo presente que chegava. Com os carregadores, seus escravos, foi
buscar a valiosa peça a São Jorge. Na
volta, na estrada, Manuel Rebentão encontrou Gregório, escravo de sua
mulher, com um ramo de flores nas mãos que o vizinho, Sr.
Agostinho, recomendou entregar a D.
Brígida, com uma pauta musical, para que ela tocasse no dia da festa. Era a
resposta ao recado que ela havia mandado entregar ao músico, disse o
escravo.
Espicaçado pelo ciúme, visivelmente
alterado, arrancou as flores das mãos do negro e, dizendo-lhe que ele mesmo as
entregaria, adiantou-se ao grupo e dirigiu-se à casa de uma velha, conhecida
nas redondezas como sendo advinha.
Contou-lhe o que se passava e pediu-lhe que interpretasse o que aquele buquê queria dizer. Luzia, que conhecia a linguagem
das flores, depois de olha-las e
observá-las demoradamente diz ao marido
desconfiado:
As flores que Vosmecê me pede para
desvendar falam de um amor fiel, verdadeiro, porém infeliz pela ausência, que
se alimenta de raros momentos felizes. Pedem uma entrevista romântica.
Rebentão tremeu. Pagou a velha com algumas moedas e, corroído pelo ciúme, mentalmente arquitetou uma vingança. Voltou para a estrada. Novamente
encontrou os escravos carregando o piano e finalmente juntos chegaram a casa.
Fingindo indiferença, para não levantar suspeitas, entregou o buque
e a música à mulher. Era a resposta ao convite para a festa, disse
dissimulado à esposa. Acreditando que o
marido de nada desconfiava, tornou a enviar no dia seguinte um recado, desta
vez pela fiel mucama, herança de família. Instruía o amante como deveriam
fazer. Após o jantar, quando os convivas
fossem em bando à pescaria com fachos, como nas noites estreladas de verão
costumava acontecer, ele deveria se retirar com alguma desculpa. Ela faria o
mesmo . Então, a sós, se encontrariam em
segredo, enquanto os demais estivessem na brincadeira noturna.
No dia seguinte, sem perceber que estava
sendo vigiada, a escrava da Sinhá saiu
sorrateiramente da casa, escondendo um papel no bolso do avental. No caminho,
Manuel Rebentão interceptou-a com xingamentos e palavreado grosseiro. Ameaçou-a de morte, ordenou-lhe que
entregasse a carta que portava. E que nada revelasse à D. Brígida, se não já sabia o que a esperava...
Finalmente a noite festiva, residência
cheia, jantar magnífico. Todos elogiavam
a música que a bela dona da casa
tirava do afamado piano. O negreiro a todos solícito, porém, não perdia a esposa de vista. A brisa fresca, após o dia calorento, o
brilho da lua, em lençol de prata sobre
o mar, o arrulhar constante das pequenas ondas a quebrar na praia, eram um
convite a embarcarem nas canoas iluminadas com tochas para pescar. Seria uma
noite agradável, divertida, não fosse o
triste episódio que a todos surpreendeu, menos ao dono da casa.
O Sr. Agostinho se despediu. E quando os
convivas se preparavam para a pescaria noturna, uma gritaria histérica se
ouviu. Era o cavalo do Sr. Agostinho,
em cavalgada desenfreada, arrastando o seu cavaleiro, que entrava
no pátio da casa grande em cena apocalíptica. Olhos esbugalhados,
ejetados, narinas chispando fogo, incendiadas, pinoteando, enlouquecido pela
dor, numa cena dantesca, o pobre animal em desespero se lançou sobre a muralha
que protegia a propriedade do mar. As tentativas dos escravos para segurar o
animal foram em vão. Cavalo e cavaleiro se precipitaram no ar, caíram em baque
surdo, pesado, sobre as pedras, junto ao mar. O choque foi geral, ninguém
queria acreditar no que via. Brígida
estupefata desmaiou, segurou-a o marido. Momentos antes daquela terrível cena,
sem que o jovem Agostinho percebesse,
seguindo as ordens do Sinhô Manuel, o escravo que lhe segurava o cavalo
enquanto montava acendeu uma isca de madeira com o charuto que trazia na boca e
meteu-a na narina do infeliz animal. O resto já se sabe. O salto foi fatal.
Quando Brígida se recuperou, já haviam trazido o corpo dilacerado de Agostinho. Sem se importar com os outros, abraçou o
corpo do amante em pranto convulsivo, enquanto ouvia do marido a cruel
acusação; aquilo tudo acontecera
por culpa dela, quando resolvera traí-lo. Além da dor da perda, ele lhe impunha
o terrível castigo, o remorso pela da morte de Agostinho. Revoltada com tão selvagem vingança,
isolou-se em seus aposentos e dias depois abandonou Rebentão. Voltou para a
casa do pai, que conhecedor da estória amparou a filha. Brígida levou consigo a
mucama e os seus dois escravos, João e Gregório.
O tempo passou, porém o ódio e o desejo de
vingança cresciam dia a dia no coração da jovem Brígida. Até que um dia, tomou
a terrível decisão, eliminaria da face da terra o odioso marido. Convocou os seus dois escravos e, prometendo-lhes a alforria, encomendou o
assassinato do negreiro. Queria que ele morresse sabendo que quem o mandara
matar tinha sido ela, D. Brígida.
Quando João e Gregório chegaram à fazenda,
Manuel Rebentão saía montado no seu alazão, enquanto a escravaria dormitava,
após a refeição, junto às bananeiras. Curioso para saber o que os trazia lá, o negreiro se aproximou dos
escravos de Brígida. Não percebeu as
facas sob os camisolões de algodão
grosseiro dos escravos. Fingindo trazer
um recado, João apresentou ao negreiro
um papel dobrado que ele supôs ser uma carta. Ao estender o braço para
pegá-lo, Gregório, o outro escravo, atingiu-o com uma facada certeira no peito.
Letalmente ferido, emitindo um
gemido, caiu por terra. Esfaquearam-no
até a morte, dizendo-lhe a cada estocada que quem os mandara tinha sido D.
Brigida, sua mulher. Ao ver a vítima
morta, fugiram enquanto os escravos do negreiro em gritaria tudo assistiam, no
entanto, sem fazer nada...
A jovem viúva recebeu a notícia numa calma satisfação,
sentia-se vingada. Os escravos estavam livres da senhora, mas não da lei.
Tornaram-se fugitivos. Apesar das suspeitas, a ela nada aconteceu. Afinal de
que valia a a palavra de escravo contra a de uma sinhá, branca , fidalga e
rica...
Já de volta à França, o escritor francês
comentou com teatral espanto o episódio daquela noite em Ilhéus. Foi um ato
de selvageria, de desprezo pela lei de Deus e dos homens, de deturpação de
costumes, só visto em terras selvagens
tropicais, colonizadas por gente bárbara e escravos, dizia. Provavelmente, ao comentar a sanguinária
estória de D. Brígida, o frustrado imigrante Frances se esqueceu da história da sua pátria e de suas
colônias...
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 06/07/12
Fonte dos dados:
Mulheres e Costumes do Brasil ( Charles
Expilly)
Sem comentários:
Enviar um comentário