terça-feira, 3 de julho de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA


Já se distinguem as paredes. Para quem olhar a partir do adro adjacente ao casarão, agora é possível ver, na direcção da corcunda, encurvando-se pelo feitio do declive da charneca, uma escadinha de tijoleiras alinhadas com o cimento à vista nas suturas. Chegou pois o momento em que eu sou capaz de imaginar o fumo saindo pelas chaminés e antevejo o conforto de um lar quente e acolhedor. Estamos a trabalhar bem, disse alguém entre nós, pela certeza de saber o tempo de execução muito aquém daquilo que nos propusemos. É um bom prémio para a nossa determinação, disso disse outrem que também não consigo precisar e que, deste modo, a todos parabenizou. E ainda bem que assim é, digo eu, certa que estou de que a privacidade do abrigo próprio a todos redobrará as forças para as ousadias que teremos pela frente. Uma coisa é aceitarmos partilhar o tecto ao jeito de uma camarata e adaptarmo-nos o melhor que pudermos a uma vida de caserna, feita de refeições e serões em conjunto, tão só com uma porta a separar eventuais recolhimentos impreteríveis. Outra coisa seria ter isso como horizonte e vermo-nos forçados a viver dessa maneira. Provavelmente, nenhum de nós o aceitaria. Mais fácil será sabermos do transitório da situação e prepararmo-nos mentalmente para o enfrentar e, neste sentido, os esqueletos que se erguem com dedos de ferro salientes nos cantos, são a prova provada de que em breve, cada um de nós passará a instalar-se na sua própria casa. Eis um bom motivo para que nos tenhamos embalado em horas suplementares de trabalho na justa proporção do aumento da duração dos dias. Paira no ar uma euforia perfeitamente justificada. Tenho a certeza que nos próximos frios invernosos terei uma lareira para me aquecer. Amanhã, na linguagem técnica do Gustavo que percebe destes assuntos e sabe bem o que é preciso fazer, começaremos a encher as placas ou melhor, porque acho que não vai ser isso que de imediato irá acontecer, começaremos a prepararmo-nos para encher as ditas que ainda segundo o mestre, será a parte mais dura e difícil, se tivermos em conta que será necessário elevarmos e pousarmos as vigas em que, depois, aquelas irão assentar. Foi para isso que hoje andei a serrar tábuas e barrotes com que fizemos os andaimes. Não fosse a alegria e o entusiasmo que sinto, dificilmente deixaria de me render à vontade de um corpo desfeito pela fadiga de se entregar à quietude do repouso se não ao mais prosaico sossego do sono. O Gustavo e a mulher estão a revelar-se uma delícia de pessoas. Foi ele que desenhou as moradias e, contando com a colaboração do Acácio que também é engenheiro, quem elaborou as plantas respectivas, numa verdadeira maratona que ao fim de uma semana de clausura se apresentou pronta de traços e cálculos. Resultou isso daquela que foi a nossa primeira decisão colectiva. Adquirida, ainda antes de aqui chegarmos, estava a ideia de virmos a morar em habitações separadas, sequer chegando a ter sido uma hipótese a possibilidade de, fosse de que forma fosse, virmos a residir todos num único edifício. Por escolher estava como seriam as moradas, se agrupadas em geminações ou isoladas entre si e, sob esta última fórmula, se na dispersão ou à laia de aldeamento. As primeiras noites tiveram, desde logo, esse mote e as conversas desenrolaram-se em conformidade, com o intuito de apurarmos uma escolha e as preferências de cada um. É engraçado como os adultos são tão pouco disciplinados nestas situações e não fosse o José Pedro a pôr ordem no desalinho das expressões, opiniões e desejos de cada um, certamente que permaneceríamos na anarqueirada das múltiplas vontades à mistura com os gracejos que mais não são que as papoilas deste género de ocasiões. Mas lá nos ordenámos e organizamos de tal maneira que se estabeleceram as arquitecturas e apuraram as que a todos acabaram por parecer as melhores soluções. Aí tive ensejo de me aperceber do bom carácter do Gustavo e do seu ânimo positivo. Para toda esta despesa que é muita, contamos com a generosidade do José Pedro que colocou à disposição um certo fundo de maneio que será amortizado logo a partir das primeiras safras. Nem todos têm os mesmos gostos e os aspectos divergem pelo agrado de cada um. À janela mais para aqui ou para ali ou os degraus para a entrada e às formas das portas entre o curvo e o rectangular, aos alpendres que se multiplicaram em função de um velho sonho de alguém, a tudo o artista atendeu, paciente em explicar como o fruto de uma imaginação se poderia adaptar à realidade alcançável e cheio de humildade no escutar os reparos para a necessidade de conter os custos, a tudo ele deu despacho com uma serenidade que raramente vejo. Muito boa gente baixaria os braços em face de tamanhas dificuldades. Ele não. Delicado no trato, sempre com o brilhar de um sorriso estampado nos lábios e no olhar, optou por encarar cada problema pelo lado do que teria que ser feito para tão só se concentrar em lhe encontrar a resolução adequada. Estou para saber como o conseguiu, mas a verdade é que ao fim de uma mão cheia de convívios nocturnos ele tinha uma série de esboços no seu caderno, identificados por destinatários e enquadrados pelos suplementos de notas escritas e pequenos desenhos em que registou os gostos e as preferências mais relevantes de cada casal. Depois foi mãos à obra, sem descurar a possibilidade para alterar uma ou outra disposição interior, ou para acolher a sugestão do senhor Abel, cuja sabedoria de experiência feita nos fez ver as vantagens de anteciparmos o amanhã e para tanto deixarmos o espaço de uma abertura para os sótãos altos, onde preveniríamos a necessidade de mais divisórias, derivada das leis naturais da procriação. A nada disso ele virou a cara ou mostrou o mais leve enfado por ter que retocar e refazer. Eu tenho trabalhado mais ao lado da mulher, a Viviana que é médica. Hoje, por exemplo, revezámo-nos de serra em punho para que tudo fosse mais rápido e ontem lavámos a roupa juntas e descascamos as batatas para o jantar. Gostei de lhe ouvir que a não existir qualquer outra razão para estar aqui, o amor pelo marido seria mais que suficiente. Encantou-me o carinho que transmitiu quando acrescentou que, para além disso, se ter uma médica por perto sempre lhe faria bem, igualmente poderia vir a ser uma mais valia para este grupo e não posso deixar de sublinhar que o condicional saiu da boca da própria. Vai ser agradável poder convidá-los para o jantar. Já estou como o senhor Abel que dando largas ao contentamento, quando esta tarde pousou as ferramentas, desabafou não ver a hora de erguer o pau da bandeira que me parece ser um costume que se respeita antes de assentar o telhado; cravasse um mastro com um pano à tiracolo num dos topos das paredes. Gostaria de falar do que ouvi à Viviana a respeito de ideias que atribuiu ao marido. Mas terá que ficar para outro dia. Estou tão cansada e doem-me tanto os braços, especialmente o direito. Contudo, é imperioso que me recupere para amanhã e a prioridade não são estas linhas, é o que temos para fazer naquelas casas que já nos vão deixando imaginar o conforto que nos irão proporcionar.

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