quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ETNOGRAFAR a ARTE de RUA (XVIII) Graffitar a Literatura


Graffitis fotografados por Luís Souta, 2015.
Cascais, Travessa do Visconde da Luz


«O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia»
(Ruy Belo, “Morte ao meio-dia” in Todos os Poemas, 2000: 364)

Estes graffitis pintados, em duas paredes contíguas, por Youth, no âmbito do Muraliza 2014, constituem uma homenagem gráfica à vila piscatória de Cascais. Raul Brandão refere-a no livro quase centenário (1923) Os Pescadores, no capítulo “Lisboa, Setúbal, Sesimbra e Caparica” (pp. 173-189). A edição dos Estúdios Cor (1973, 227 p.) abre com o “auto-retrato” do autor:
«Este tipo esgalgado e seco,
já ruço,
que dorme nas eiras
ou sonha acordado pelos caminhos
sou eu.
e falo alto sozinho,
envolto na nuvem
que me envolve e impregna.
Que força me guia
e impele até à morte?»

Eugénio de Andrade complementa, na sua deslumbrante prosa poética, este retrato no capítulo que lhe dedica – “Quase uma glosa” – em Afluentes do silêncio (Porto: Ed. Inova, 3ª edição, Abril de 1974, pp. 125-129):
«Os olhos tinha-os azuis, de uma azul que nunca destingiu. Uns olhos que consumiu a sonhar. Sonhava impenitentemente porque, à sua roda, tudo morria à míngua de autenticidade. Isto lhe doía. Isto lhe doía mais do que a pobreza dos pescadores (…) De Raul Brandão (…) se poderia dizer (…) gastou-se a sonhar. Alguns dos seus sonhos são ainda os nossos – eis porque está tão vivo no nosso coração.»

Exemplo desta actualidade, foi-nos dado pelo realizador Manoel de Oliveira quando estreou, no Festival de Veneza de 2012, o filme O Gebo e a Sombra, baseado na obra homónima de Raul Brandão (1923).

Os Pescadores, dedicado por Raul Brandão (1867-1930) «à memória de meu avô, morto no mar», é um percurso, ao longo da costa portuguesa, iniciado no local onde nasceu (Foz do Douro), em Abril de 1920, e concluído em Sagres, em Agosto de 1922. Brandão percorre as nossas múltiplas comunidades piscatórias descrevendo, com pormenor e detalhe, os seus diferentes tipos de barcos, de redes, de artes de pesca e, com «um certo exagero emocional tão seu característico», a vida daquela gente pobre e sofrida.

«Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, os outros ganham-lhe o pão: recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam-lhe a viúva e os filhos, entregando-lhe o ganho que ele tinha em vida. Dão ao hospital e ao asilo uma parte do pescado. Toda a gente tem direito a ir ao mar – toda a gente tem direito à vida. Vai quem aparece, desde que seja marítimo. Acontece que o barco leva hoje quarenta homens e leva vinte amanhã… O produto das artes é dividido em quinhões iguais pela companha. A pesca do anzol é uma espécie de cooperativa e a barca quase dos pescadores. (p. 181)

Raul Brandão deu-nos conta de uma outra viagem marítima, desta vez pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores (na companhia, entre outros, de Vitorino Nemésio), que decorreu entre 8 de Junho e «a noite de 29 de Agosto [de 1924] passo-a no tombadilho, sempre à espera numa sofreguidão de luz – e toda a noite é de trágica tempestade. No convés, só vejo negrume agitando-se num clamor. Mas de manhã a borrasca aplaca-se dentro da bacia de Cascais»

Quando este livro – As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens (1926) – foi reeditado pela Quetzal (2011, 205 p.), Gustavo Rubim, numa curta e interessante recensão (“Antropologia impura”, Público-Ípsilon, 29/04/11, p. 50), destacou esta vertente antropológica de Raul Brandão:
«Trata-se, admito, duma modalidade impura de antropologia, muito embora Brandão não se esqueça de observar tudo o que um bom etnógrafo deve observar: economia, religião, ritos funerários, modos de habitação, vida familiar, relação com  o ambiente, linguagem, etc. Não admira: a antropologia foi sempre impura ou, por outras palavras, foi sempre (continua a ser) literária.»

Luís Souta

Nota do Editor: Para ampliar as fotografias basta clicar em cima.

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