AS NOZES E OS DENTES
“Dá Deus nozes a quem não tem dentes.” Não é o que diz o ditado?
Ontem deixei mais cedo este diário para assistir a uma entrevista com Mário Vargas Llosa, na RTP 1. Escritor que dispensa apresentações, pessoa rica de vida como poucas e observador atento da América Latina e do mundo e, para tanto, particularmente bem posicionado, a ocasião era especial e adivinhava-se como daqueles momentos únicos em que a aprendizagem está garantida. Tirei-me pois dos meus afazeres e sentei-me no sofá da sala.
Infelizmente a entrevistadora mostrou desconhecer a obra literária de quem tinha pela frente. Se estava razoavelmente bem preparada em termos biográficos e no referente à produção jornalística dos últimos anos, não foi capaz de lhe puxar pela língua sobre nenhum dos seus livros e nem quando ele aludiu a certos episódios da sua vida que mais tarde usou como mote central de alguns dos seus romances, como foi o caso do casamento aos dezoito anos que ele retratou com tanto humor em “Tia Júlia e o Escrevedor”, nem com tão boas deixas a senhora foi capaz de conversar sobre um trabalho literário que é vasto e do melhor que se faz a nível mundial.
Para além disto que não seria de somenos, quando o homem tem livros que reflectem sobre temas tão prementes e relevantes como o terrorismo (1) ou a aculturação, (2) a partir do que seria possível estabelecer um diálogo sobre a actualidade planetária em que o Mestre poderia expor de modo mais aprofundado o seu pensamento, a senhora limitou-se a perguntar se a visita ao Iraque tinha sido uma experiência marcante – nem aí teve a curiosidade de nos fazer ouvir a narrativa dos contactos e de uma ou outra história a propósito – e qual a posição do autor sobre a globalização.
Uma pessoa que foi candidata à presidência do Perú (3) e que testemunhou como este país retrocedeu em termos de desenvolvimento, viu-se ali confrontada com perguntas pueris e superficiais que para resultado deixaram o diamante bem escondido nos materiais que o envolvem.
Enfim, aquilo que poderia ser um documento do máximo interesse para a mediateca televisiva nacional, acabou por se deixar ficar por um agradável diálogo, é verdade, mas a que o arguto prosador da “História de Mayta” não se furtaria, com um qualquer desconhecido, à mesa de um qualquer café de ocasião.
Até a “Conversa na Catedral”, o único livro citado pela profissional da informação, ficou em branco quer enquanto retrato da ditadura militar, quer enquanto espelho e tentativa de compreensão do submundo da marginalidade criminosa que o criador, no entanto, apontou.
De parte ficaram aquelas pérolas que desde a paródia da tirania (4) à ilustração da crueldade a que a mesma abre portas, (5) percorrendo géneros que vão do épico (6) ao policial (7) e à sátira (8), perfazem uma obra literária que certamente justificou a patética pergunta se o entrevistado se sentia diminuído por nunca ter sido laureado com o nobel.
Seja como for, grande foi o prazer em ouvir alguém tão sensato e sabedor.
Pessoalmente, fiquei encantado por saber que a vocação lhe apareceu por volta dos catorze quinze anos e que tudo começou por um poema escrito aos dez.
Tratam-se de afinidades com quem vim a considerar uma das minhas referências.
Mas que se perdeu um grande momento televisivo, disso não tenho a mínima dúvida.
Dia vinte e quatro de Outubro de dois mil e três
o concorde voou pela última vez.
É o ponto final definitivo na época de esperança que se seguiu à segunda guerra mundial, durante a qual pareceu possível um desenvolvimento contínuo e tendencialmente infinito.
Tempos de crença que encontraram o corolário no aparato tecnológico com que foram organizadas as olimpíadas de setenta e dois, em Munique, precisamente no evento em que essa fé ingénua sofreu o primeiro golpe mortal com o massacre dos atletas israelitas por terroristas de uma organização palestiniana, se não erro, o Setembro Negro.
Quando outro concorde qualquer for possível, o mundo será muito diferente daquele que hoje conhecemos.
Noite de chuva copiosa, mas a temperatura teve uma descida brusca.
Ontem, quando saí de casa para trazer a ganilha de regresso da aula de ginástica, vi-me na necessidade de vestir um pullover de manga comprida e hoje toda a família se apetrechou com um cobertor para a ausência do sono.
Há neve na Serra da Estrela.
Mas as gatinhas dormem a quente no aconchego das suas caminhas.
Esta manhã os alunos começaram por fazer um desenho e depois seguiram-se os exercícios gráficos.
Há trabalho de casa para o fim de semana.
E na conferência de doadores, em Madrid, ainda bem que os aliados conseguiram reunir trinta e três mil milhões de dólares para a reconstrução do Iraque.
Mesmo que em Israel a construção de um muro defensivo seja mais um impasse no processo de paz com os palestinianos, aquele é um sinal de esperança.
Não há democrata algum que não anseie por um Iraque próspero, pacífico e democrático.
Isto não é um sonho, é um objectivo necessário.
Apetecia-me fumar um cigarro, mas as bátegas estatelam-se nos vidros que dão acesso a uma varanda debruçada sobre a noite.
Alhos Vedros
24/10/2003
NOTAS
(1) Vargas Llosa, Mário, LITUMA NOS ANDES
(2) idem, O FALADOR
(3) idem, COMO PEIXE NA ÁGUA
(4) idem, PANTALEÃO E AS VISITADORAS
(5) idem, A FESTA DO CHIBO
(6) idem, A GUERRA DO FIM DO MUNDO
(7) idem, QUEM MATOU PALOMINO MOLERO?
(8) Idem, O ELOGIO DA MADRASTA e OS CADERNOS DE D. RIGOBERTO
CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Vargas Llosa, Mário, PANTALEÃO E AS VISITADORAS, Tradução de José Teixeira de Aguiar, Edições Europa América, Mem Martins, 1975; A GUERRA DO FIM DO MUNDO, Tradução de Maria Vitória Navas e Salvato Teles Meneses, Livraria Bertrand, Lisboa, 1984; HISTÓRIA DE MAYTA, Tradução de José Carlos Gonzalez, Publicações D. Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 1987; A TIA JÚLIA E O ESCREVEDOR, Tradução de Cristina Rodrigues, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 1988; QUEM MATOU PALOMINO MOLERO, Tradução de António José Massano, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 1988; O FALADOR, Tradução de António José Massano, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 1989; O ELOGIO DA MADRASTA, Tradução de Cristina Rodrigues, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 1989; CONVERSA NA CATEDRAL, Introdução de José de Melo, Tradução de José Teixeira de Aguilar, Círculo de Leitores, Lisboa, 1991; COMO PEIXE NA ÁGUA, Tradução de Miguel Soares Pereira, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 1994; LITUMA NOS ANDES, Tradução de Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa 1994; OS CADERNOS DE DOM RIGOBERTO, Tradução de José Teixeira de Aguilar, Publicações Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa 1998; A FESTA DO CHIBO, Tradução de Miguel Serras Pereira, Dom Quixote (1ª. Edição), Lisboa, 2001
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