Zé Povinho, Bordalo Pinheiro, 1882 Album das Glórias, n.º 32 |
"Um povo imbecilizado e
resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta
de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma
rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as
orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se
lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que
eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência
como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio
escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,não descriminando
já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que,
honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e
sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à
falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam,
entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis
no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de
cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,
tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da
Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem
planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico
e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro
como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso,
pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma
sala de jantar."
Guerra Junqueiro, 1896.
Selecção de António Tapadinhas
2 comentários:
Como se pode verificar os males já vêm de trás mas, nunca é de mais lembrar. Mesmo na baixa expectativa de que sirva para nos espevitar e mudar qualquer coisinha.
Abraço.
MJC
MJC: Para alguém que não nos conheça (povo português) pensará, espero, que é uma boa caricatura, escrita com humor e uma certa elegância. O pior é que, às vezes, mais parece um retrato...
Abraço,
António
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