domingo, 28 de fevereiro de 2016

FALANDO DE MUDANÇA


Abdul Cadre
  
Dizia o outro, certamente carregadinho de razão, que todo o mundo é composto de mudança,[1] mas eu não sei se ele também tinha em conta as mudanças que nada mudam e os feitios empedernidos daqueles indefectíveis das aparências, que dizem amiúde «a mim ninguém muda» ou, na versão mais popular, «a mim ninguém me vira». Face a isto, bem andava um outro que não se cansava de dizer que só os burros é que não mudam.
A capacidade de mudar, não só de opinião, mas sobretudo de comportamento e de vida, insere-se no mais comum dos processos de renovação do pensar e do agir, das estações, do tempo, da natureza. Tem sobremaneira a ver com aquilo que é mais evidente no comportamento daqueles que vivem de propósito: o entusiasmo, que não devemos confundir com o seu aspecto patológico, que é a paixão, que se alimenta da angústia, ao passo que o grande combustível do entusiasmo é a alegria.
Mudar depende da experiência e «a experiência, que é madre das cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira»[2]. E experiência não é aquilo que se repete até nos tornarmos hábeis, é o que se acumula em discernimento e em ponderação à medida que nos desenganamos. Ser ligeiro, volúvel, mudar por mudar, não é mudar, é mundanar.
De opinião se mude quando de razão e experiência se use.  «Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no espírito».[3] «Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia»[4].
Experiência, entusiasmo e alegria são valores comportamentais de muito difícil uso nos tempos que correm, tão dados à infantilidade das pequenas satisfações efémeras, aos «gadgets» proporcionados pelas novas tecnologias, que são precisamente para nos infantilizar que servem; infantis sem a candura das crianças, sem capacidade para nos maravilharmos. Se aqui houver entusiasmo, não será o de quem aprende a jogar ao berlinde, mas tão-só o de quem quer colher a vantagem de ter um abafador.
Talvez surja o riso – pode bem ser! – mas como um sucedâneo da alegria, apenas para uso externo.
A mudança corrente é a da margarina com sabor a manteiga e dos pozinhos de perlimpimpim em água salobra como sumo de qualquer coisa que o rótulo diz, mentindo. Esta é a mudança corrente, a mudança dos que não mudam, dos que consomem ordeiramente o que se lhes manda que consumam.
E vem o da cantiga e diz: «Para melhor está bem, está bem, para pior já basta assim» e logo os burros espetam as suas enormes orelhas, mas não escutam; se ouvem, não entendem…
   

[1] Soneto de Camões.
[2] Esmeraldo de Situ Orbis (cerca de 1507), obra do cosmógrafo Duarte Pacheco Pereira, dedicada a D. Manuel I. A palavra Esmeraldo é um anagrama em latim partir do nome de Manuel (Emanuel) e Duarte (Eduardus). «De Situ Orbis» significa «dos sítios da Terra.
[3] William Blake.
[4] Fernando Pessoa.

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