RISOS E ENIGMAS
Chuva e vento,
as arestas assobiam
e no horizonte, as luzes
parecem embaciadas.
É hora de interiores.
Os jantares costumam ser um espaço de comunhão na família, só muito raramente ocupados com assuntos sérios que, normalmente, são resolvidos quer naquela hora que antecede a refeição, quer na que se lhe segue e a separa do encontro com o João Pestana. Vulgar é que as conversas girem em torno do dia a dia de cada um ou que os pais aproveitem para comentar um qualquer assunto, no que as miúdas já vão dando opinião ou então que sejam estas a fazê-lo, como seria de esperar, relativamente a temas do seu interesse. Monotonia é que não há, de modo algum.
Pois hoje a Margarida veio com enigmas, isto para usar as suas palavras.
“-De que cor é o cavalo branco de Napoleão?” –Perguntou, repentinamente, à mãe, ao que a Matilde logo se antecipou, rindo com a resposta.
“-Eu nem sei quem é o Napoleão, como é que queres que eu saiba? Mas é branco, se tu estás a dizer que é branco é porque é.”
E depois do elogio, a risada continuou.
Hoje foi dia de bater com o nariz na porta.
Não houve aula de ginástica e depois do jantar, foi em vão que saí para a reunião da associação de pais. Troquei a noite do encontro.
Ontem acabei de ler o relato de uma secretária de Adolf Hitler a respeito do que foi o seu desempenho laboral nos dois anos e meio em que o serviu e lhe fez companhia e que, por sinal, foram os do desfecho fatal do Reich dos mil anos. (1)
Parece-me ser uma narrativa sincera, pois a Autora não a usa para se justificar ou se arrepender do que quer que tenha feito nesse tempo, antes se limita a descrever o que da sua irrelevância lhe foi dado ver. E, pelas suas palavras, percebe-se que se esse foi um período de enganos, então terá sido equivalente a um delírio doce. Afinal ela estava na corte que descreve com tanta inocência que chega a parecer infantil. No mundo real praticava-se com o maior zelo a Solução Final e, nas frentes de batalha, os homens sabiam que só a morte poria termo à fúria das armas.
O cesarismo que o ditador via na sua própria pessoa, segundo o olhar da subalterna, talvez seja esse um dos álibis com que, posteriormente, se possam ter desculpado muitas cumplicidades.
Mas é precisamente por isto que este livro nos convida a pensar no quanto as tiranias também têm muito de consentido.
E não me refiro ao aspecto dos totalitarismos levarem as suas vítimas a pensarem no que possam ter feito para merecer o castigo.
Estou antes a pensar no deslumbramento que o povo sente perante o Faraó, isto é, à semelhança de Goldhagen, relativamente ao anti-semitismo, (2) os antecedentes culturais que viabilizaram a afirmação do César, a anuência, o consentimento que a população dá ao seu mando providencial.
É importante reflectir sobre isto.
Será possível uma vacina cultural para este género de tragédias?
Continuaram os exercícios em torno das palavras menino e menina, primeiro com colagens referentes ao começo do Estudo do Meio com a caracterização da identidade e depois através de jogos com sílabas.
Por fim houveram desenhos alusivos.
A construção de edifícios com cento e cinco andares viola o plano director municipal da cidade de Lisboa.
Ainda assim, uma empresa propõe-se construir três dessas torres em Alcântara e esta tarde apresentou publicamente o projecto que tem a assinatura de Sousa Vieira.
Chegámos a isto.
Já não há barreiras para o egoísmo e o despudor.
Então o Dr. Jorge Coelho não vem reclamar pelas reformas inadiáveis?
As nuvens teclam os ferros da varanda.
Alhos Vedros
30/10/2003
NOTAS
(1) Junge, Traudl, ATÉ AO FIM
(2) Goldhagen, Daniel Jonah, OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER
CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Goldhagen, Daniel Jonah, OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER, Não refere a tradução, Editorial Notícias (1ª. Edição), Lisboa, 1999
Junge, Traudl, ATÉ AO FIM, Prefácio da Autora, Tradução de Cláudia Porto, Dinalivro (1ª. Edição), Lisboa, 2003
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