terça-feira, 22 de março de 2016

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

RISOS E ENIGMAS
Chuva e vento, 
as arestas assobiam 
e no horizonte, as luzes 
parecem embaciadas. 

É hora de interiores. 



Os jantares costumam ser um espaço de comunhão na família, só muito raramente ocupados com assuntos sérios que, normalmente, são resolvidos quer naquela hora que antecede a refeição, quer na que se lhe segue e a separa do encontro com o João Pestana. Vulgar é que as conversas girem em torno do dia a dia de cada um ou que os pais aproveitem para comentar um qualquer assunto, no que as miúdas já vão dando opinião ou então que sejam estas a fazê-lo, como seria de esperar, relativamente a temas do seu interesse. Monotonia é que não há, de modo algum. 

Pois hoje a Margarida veio com enigmas, isto para usar as suas palavras. 

“-De que cor é o cavalo branco de Napoleão?” –Perguntou, repentinamente, à mãe, ao que a Matilde logo se antecipou, rindo com a resposta. 
“-Eu nem sei quem é o Napoleão, como é que queres que eu saiba? Mas é branco, se tu estás a dizer que é branco é porque é.” 

E depois do elogio, a risada continuou. 



Hoje foi dia de bater com o nariz na porta. 
Não houve aula de ginástica e depois do jantar, foi em vão que saí para a reunião da associação de pais. Troquei a noite do encontro. 



Ontem acabei de ler o relato de uma secretária de Adolf Hitler a respeito do que foi o seu desempenho laboral nos dois anos e meio em que o serviu e lhe fez companhia e que, por sinal, foram os do desfecho fatal do Reich dos mil anos. (1) 

Parece-me ser uma narrativa sincera, pois a Autora não a usa para se justificar ou se arrepender do que quer que tenha feito nesse tempo, antes se limita a descrever o que da sua irrelevância lhe foi dado ver. E, pelas suas palavras, percebe-se que se esse foi um período de enganos, então terá sido equivalente a um delírio doce. Afinal ela estava na corte que descreve com tanta inocência que chega a parecer infantil. No mundo real praticava-se com o maior zelo a Solução Final e, nas frentes de batalha, os homens sabiam que só a morte poria termo à fúria das armas. 
O cesarismo que o ditador via na sua própria pessoa, segundo o olhar da subalterna, talvez seja esse um dos álibis com que, posteriormente, se possam ter desculpado muitas cumplicidades. 
Mas é precisamente por isto que este livro nos convida a pensar no quanto as tiranias também têm muito de consentido. 
E não me refiro ao aspecto dos totalitarismos levarem as suas vítimas a pensarem no que possam ter feito para merecer o castigo. Estou antes a pensar no deslumbramento que o povo sente perante o Faraó, isto é, à semelhança de Goldhagen, relativamente ao anti-semitismo, (2) os antecedentes culturais que viabilizaram a afirmação do César, a anuência, o consentimento que a população dá ao seu mando providencial. 

É importante reflectir sobre isto. 
Será possível uma vacina cultural para este género de tragédias? 



Continuaram os exercícios em torno das palavras menino e menina, primeiro com colagens referentes ao começo do Estudo do Meio com a caracterização da identidade e depois através de jogos com sílabas. 
Por fim houveram desenhos alusivos. 



A construção de edifícios com cento e cinco andares viola o plano director municipal da cidade de Lisboa. 
Ainda assim, uma empresa propõe-se construir três dessas torres em Alcântara e esta tarde apresentou publicamente o projecto que tem a assinatura de Sousa Vieira. 

Chegámos a isto. 
Já não há barreiras para o egoísmo e o despudor. 


Então o Dr. Jorge Coelho não vem reclamar pelas reformas inadiáveis? 



As nuvens teclam os ferros da varanda. 


 Alhos Vedros 
  30/10/2003 


 NOTAS 

(1) Junge, Traudl, ATÉ AO FIM 
(2) Goldhagen, Daniel Jonah, OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER 


 CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 

Goldhagen, Daniel Jonah, OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER, Não refere a tradução, Editorial Notícias (1ª. Edição), Lisboa, 1999 
Junge, Traudl, ATÉ AO FIM, Prefácio da Autora, Tradução de Cláudia Porto, Dinalivro (1ª. Edição), Lisboa, 2003

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