quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O QUE INTERPRETAMOS


por José Pais de Carvalho

Encontrar nas nossas vidas o que é essencial e destrinçar o que é acessório é, antes de mais, termos o discernimento de entender o que nos traz satisfação interior. E não é uma tarefa fácil. Na verdade estamos sempre sujeitos a uma escolha, mas esta depende muito da consciência que temos e não tanto da cultura na qual estamos inseridos, porque esta é o reflexo de como somos e pensamos.

Há dois aspectos dentro de nós com os quais convivemos. Um deles é o ego, a causa de todos os nossos problemas. É este que nos dá a perspectiva singular e divisível do que apreendemos e faz agarrar-nos às emoções e ao objecto delas, restringindo-nos a interpretação. O outro é a nossa verdadeira identidade, a que se revela quando, em momentos específicos, o nosso pensamento pára.  Ao que acontece nesses períodos, surpreendidos, erroneamente chamamos por coincidências, porque, numa atitude receptiva, permitimo-nos dizer que tivemos uma intuição ou no caso do artista, criou-se uma obra de arte. Até mesmo em nossas vidas, sem nada o fazer esperar, já se desbloquearam coisas que nem sabíamos como as resolver.

O ego é, pois, sustentado pela visão que temos do mundo. Remete-nos ao medo do que não conhecemos, o que nos leva a criar soluções dentro dos limites do nosso mapa emocional e comportamental. No entanto, dá-nos uma falsa ideia de criação, que não é mais do que mera construção. O seu âmbito de acção está no domínio intelectual que constrói conceitos, abstracções e interpretações - individualizando, analisando, categorizando. O que significa fazer um universo de diferenciações e contrários. Estes contrários, por si só, originam a ambiguidade e tampouco são sinónimos de opostos. Mas a interpretação de algo não necessita desta ambiguidade nem das suas consequências.  A polivalência de sentidos e as infinitas interpretações levam-nos a um distanciamento de nós mesmos, à confusão e às doenças mentais.

E é desta maneira que confundimos a realidade com a sua representação, a nossa identidade com a nossa mente – logo, nós não existimos porque pensamos, mas porque somos um todo que vai muito para lá do cérebro e dos cinco sentidos.

Essa maneira de usar a racionalidade impossibilita qualquer princípio de unicidade. Ainda que nos possa dar uma aproximação da realidade, a visão dualista não nos permite entendê-la. Ela nunca é fruto da experiência. Por esta razão é geradora de profundos conflitos existenciais, familiares e sociais.

Não estou com isto a dizer que a racionalidade é inútil, mas antes a chamar a atenção de que, no âmbito do conhecimento por via do intelecto, é útil quando queremos construir uma máquina, mas nunca para adquirir o conhecimento de nós próprios. Este conhecimento adquire-se através da experiência e é, a partir desta, que se interpreta.

Do mesmo modo, quanto mais nos limitamos a interpretar o mundo à luz dos factos e dos acontecimentos mentais, mais perdemos a noção de que o fazemos baseados nas nossas próprias concepções, e isso perturba-nos  a visão sobre nós próprios e do mundo, enchendo-nos de emoções prejudiciais e  conflitos, afirmando constantemente a nossa individualidade, enchendo-nos de conceitos e pré-conceitos, vincando a separabilidade de tudo ou qualquer coisa.

Dizendo de outro modo, a visão que temos, não é só consequência de um conjunto de variantes improváveis de poderem ser entendidas intelectualmente, mas também de condições que se manifestam perante circunstâncias e situações favoráveis; porém,  não nos permitem ver nada mais além desses limites da visão. Por isso, cada um de nós tem caracteres, tendências e interpretações diferenciadas e uma perspectiva única de nos olharmos e ao mundo. Poderemos dizer que os apetrechos inatos que possuímos são o necessário para cumprir a nossa vida.

Na perspectiva de nos libertarmos da ignorância, desenvolvemos as nossas qualidades, mas também corrigimos os nossos defeitos. Estudamos, pensamos, treinamos habilidades, desenvolvemos a capacidade de elaborar conceitos, ideias, trocamos opiniões. No fundo, debatemo-nos para ultrapassarmos a ignorância, procurando soluções próprias.

E afinal o que interpretamos? Ou uma perspectiva estritamente intelectual do senso comum que nos leva a infinitas interpretações abstractas e, como consequência, aos caos emocional e existencial. Ou compreendemos a nossa emocionalidade através da nossa experiência de vida, da nossa percepção e sensações, onde o intelecto posteriormente interpreta.

São estes dois os movimentos possíveis entre os quais nos deslocamos. Um, o que definitivamente nos distancia, e outro que nos leva ao encontro de nós mesmos. Não é por sabermos teorias, munirmo-nos de muitos conceitos e encontrarmos diferenças em tudo que nos tornamos melhores ou piores; e tampouco isso permite-nos ter satisfação. Já o movimento contrário leva-nos a saber discernir e perceber o nosso verdadeiro objectivo na vida ao encontramos aquilo que nos deixa intimamente satisfeitos e em paz, e é quando a multiplicidade, que torna a nossa vida num inferno, desaparece.

Mas essas escolhas têm de ser feitas não só para a nossa vida pessoal, como também para os objectos dos nossos interesses e estudos. Por exemplo, em literatura, na interpretação, a análise da diversidade de sentidos, da intenção do autor, da intenção do texto ou das qualidades do leitor, entre outros, só podem ser entendidas como uma forma limitada. Todos estes aspectos são de natureza intelectual, por conseguinte, mentalmente construídos, permitem-nos a análise, a suspeição, as descrições de estruturas, de modelos, mas no contexto do autoconhecimento e do conhecimento do ser humano na sua essência e natureza nada trazem que melhore as nossas qualidades e potencialidades, nem o entendimento da existência humana. O contexto do conhecimento intelectual traz-nos infindáveis possibilidades, contudo inúteis, porque estas nunca poderão chegar a qualquer finalidade para além do aspecto formal.

Tal como num jogo, os jogadores podem, ao longo da sua carreira,  ganhar melhor capacidade física, desenvolver melhores estratégias técnico-tácticas, mas o jogo é sempre o mesmo: se ganham uma vez, terão de voltar a ganhar, se perdem, têm de conseguir ganhar no próximo. A interpretação, no ponto de vista tradicional, é igual a um jogo, um círculo fechado, estéril. Em nada evoluímos, nem progredimos. Pelo menos numa perspectiva existencial.

Através das experiências da Fisica moderna e à medida que se penetra na natureza do universo, o físico tem de abandonar a sua linguagem para descrever essas mesmas experiências; nós, de igual modo, quando vivenciamos esses mesmos fenómenos, não temos palavras para os descrever.

O que difere entre ambas as perspectivas parece estar na particularidade de, individualmente, podermos vivenciar os fenómenos, enquanto nas experiências científicas se podem descrever e interpretar (interpretações essas chamadas teorias ou modelos). E aqui há, não só uma convergência no pensamento, mas idênticas descrições dos fenómenos.

A diferença entre aqueles que, pela experiência, vivenciam o fenómeno e as conclusões dos cientistas, reflecte-se em  que, estes, o fazem por via intelectual e os primeiros pelo que integram quando é vivido. Ou seja, pode-se explicar a diferença através de um exemplo muito simples como é andar de bicicleta. Pode-se explicar como temos de nos equilibrar em cima dela, como pedalamos e travamos, descrever os meios que utilizamos para andar, mas isso não nos permite saber andar de bicicleta. É preciso praticar, sentarmo-nos nela e colocar esses aspectos teóricos em prática, e se não tivermos essa experiência que nos permite equilibrar, pedalar, travar, olhar para os lados que, no fundo, é o que se chama andar de bicicleta, então não sabemos andar de facto de bicicleta.

Reparo que cada vez mais as pessoas procuram dar um sentido ao sentido que a vida tem, mas também que, cada vez mais, se torna distante essa possibilidade. Provavelmente, porque não sabem o que procurar ou reconhecer a sua meta.  No fundo, a vida é simples, também precisamos de parar um pouco e ficar apenas a observar. Sermos espectadores de nós próprios.

O que escrevo, por exemplo, se não vivido também por outras pessoas, está sujeito a todo o tipo de criticas, comentários e divergentes opiniões que se baseiam nos mais diversos aspectos intelectuais. Essas divisibilidades não são tão perceptiveis quando se trocam ideias, devido à  própria natureza da linguagem; contudo agarramo-nos a conceitos da mesma maneira como as pessoas  que  se agarram demasiadamente a factos e, quantas vezes  isso nos afasta delas, porque percebemos que são muito comesinhas, mesquinhas, conflituosas, que  se agarram a tudo e, até sem querer, acabam por transformar tudo num conflito, sempre a confrontar-se com o que o outro disse e fez ou faz.  Portanto, quanto mais nos agarramos aos factos e a construções mentais, menor é a possibilidade de entender o que vemos e  o que escutamos.  A  isto chama-se ignorância no contexto em que o apresento.

Por outro lado, quando temos a receptividade de sermos espectadores de nós mesmos e não ficarmos a fazer comparações com os outros e a pôr em causa tudo o que nos é exterior, quando, de facto, fruto da nossa vivência, entendemos o que o outro nos transmite, porque este também já vivenciou o mesmo, então estamos naturalmente de acordo. Nada nos pode perturbar. O silêncio, usando-o como figura de estilo ou de uma forma linear, é a expressão do conhecimento vivenciado, do Verbo para alguns, para outros da experiência.

É, pois, esta simplicidade o lugar do conhecimento onde não há segredos, sentidos ocultos, nem mistérios.

José Pais de Carvalho
Sintra, 2015

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