por José Pais de Carvalho
Encontrar nas
nossas vidas o que é essencial e destrinçar o que é acessório é, antes de mais,
termos o discernimento de entender o que nos traz satisfação interior. E não é
uma tarefa fácil. Na verdade estamos sempre sujeitos a uma escolha, mas esta
depende muito da consciência que temos e não tanto da cultura na qual estamos
inseridos, porque esta é o reflexo de como somos e pensamos.
Há dois aspectos
dentro de nós com os quais convivemos. Um deles é o ego, a causa de todos os
nossos problemas. É este que nos dá a perspectiva singular e divisível do que
apreendemos e faz agarrar-nos às emoções e ao objecto delas, restringindo-nos a
interpretação. O outro é a nossa verdadeira identidade, a que se revela quando,
em momentos específicos, o nosso pensamento pára. Ao que acontece nesses períodos,
surpreendidos, erroneamente chamamos por coincidências, porque, numa atitude
receptiva, permitimo-nos dizer que tivemos uma intuição ou no caso do artista,
criou-se uma obra de arte. Até mesmo em nossas vidas, sem nada o fazer esperar,
já se desbloquearam coisas que nem sabíamos como as resolver.
O ego é, pois,
sustentado pela visão que temos do mundo. Remete-nos ao medo do que não
conhecemos, o que nos leva a criar soluções dentro dos limites do nosso mapa
emocional e comportamental. No entanto, dá-nos uma falsa ideia de criação, que
não é mais do que mera construção. O seu âmbito de acção está no domínio
intelectual que constrói conceitos, abstracções e interpretações -
individualizando, analisando, categorizando. O que significa fazer um universo
de diferenciações e contrários. Estes contrários, por si só, originam a
ambiguidade e tampouco são sinónimos de opostos. Mas a interpretação de algo
não necessita desta ambiguidade nem das suas consequências. A polivalência de sentidos e as infinitas
interpretações levam-nos a um distanciamento de nós mesmos, à confusão e às
doenças mentais.
E é desta maneira que
confundimos a realidade com a sua representação, a nossa identidade com a nossa
mente – logo, nós não existimos porque pensamos, mas porque somos um todo que
vai muito para lá do cérebro e dos cinco sentidos.
Essa maneira de usar
a racionalidade impossibilita qualquer princípio de unicidade. Ainda que nos
possa dar uma aproximação da realidade, a visão dualista não nos permite
entendê-la. Ela nunca é fruto da experiência. Por esta razão é geradora de profundos
conflitos existenciais, familiares e sociais.
Não estou com isto a
dizer que a racionalidade é inútil, mas antes a chamar a atenção de que, no
âmbito do conhecimento por via do intelecto, é útil quando queremos construir
uma máquina, mas nunca para adquirir o conhecimento de nós próprios. Este
conhecimento adquire-se através da experiência e é, a partir desta, que se interpreta.
Do mesmo modo, quanto
mais nos limitamos a interpretar o mundo à luz dos factos e dos acontecimentos
mentais, mais perdemos a noção de que o fazemos baseados nas nossas próprias
concepções, e isso perturba-nos a visão
sobre nós próprios e do mundo, enchendo-nos de emoções prejudiciais e conflitos, afirmando constantemente a nossa
individualidade, enchendo-nos de conceitos e pré-conceitos, vincando a
separabilidade de tudo ou qualquer coisa.
Dizendo de outro
modo, a visão que temos, não é só consequência de um conjunto de variantes
improváveis de poderem ser entendidas intelectualmente, mas também de condições
que se manifestam perante circunstâncias e situações favoráveis; porém, não nos permitem ver nada mais além desses
limites da visão. Por isso, cada um de nós tem caracteres, tendências e
interpretações diferenciadas e uma perspectiva única de nos olharmos e ao
mundo. Poderemos dizer que os apetrechos inatos que possuímos são o necessário
para cumprir a nossa vida.
Na perspectiva de nos
libertarmos da ignorância, desenvolvemos as nossas qualidades, mas também
corrigimos os nossos defeitos. Estudamos, pensamos, treinamos habilidades,
desenvolvemos a capacidade de elaborar conceitos, ideias, trocamos opiniões. No
fundo, debatemo-nos para ultrapassarmos a ignorância, procurando soluções
próprias.
E afinal o que
interpretamos? Ou uma perspectiva estritamente intelectual do senso comum que
nos leva a infinitas interpretações abstractas e, como consequência, aos caos emocional
e existencial. Ou compreendemos a nossa emocionalidade através da nossa
experiência de vida, da nossa percepção e sensações, onde o intelecto posteriormente
interpreta.
São estes dois os
movimentos possíveis entre os quais nos deslocamos. Um, o que definitivamente
nos distancia, e outro que nos leva ao encontro de nós mesmos. Não é por
sabermos teorias, munirmo-nos de muitos conceitos e encontrarmos diferenças em
tudo que nos tornamos melhores ou piores; e tampouco isso permite-nos ter
satisfação. Já o movimento contrário leva-nos a saber discernir e perceber o
nosso verdadeiro objectivo na vida ao encontramos aquilo que nos deixa
intimamente satisfeitos e em paz, e é quando a multiplicidade, que torna a
nossa vida num inferno, desaparece.
Mas essas escolhas
têm de ser feitas não só para a nossa vida pessoal, como também para os
objectos dos nossos interesses e estudos. Por exemplo, em literatura, na
interpretação, a análise da diversidade de sentidos, da intenção do autor, da
intenção do texto ou das qualidades do leitor, entre outros, só podem ser
entendidas como uma forma limitada. Todos estes aspectos são de natureza
intelectual, por conseguinte, mentalmente construídos, permitem-nos a análise,
a suspeição, as descrições de estruturas, de modelos, mas no contexto do
autoconhecimento e do conhecimento do ser humano na sua essência e natureza
nada trazem que melhore as nossas qualidades e potencialidades, nem o
entendimento da existência humana. O contexto do conhecimento intelectual
traz-nos infindáveis possibilidades, contudo inúteis, porque estas nunca
poderão chegar a qualquer finalidade para além do aspecto formal.
Tal como num jogo, os
jogadores podem, ao longo da sua carreira,
ganhar melhor capacidade física, desenvolver melhores estratégias
técnico-tácticas, mas o jogo é sempre o mesmo: se ganham uma vez, terão de
voltar a ganhar, se perdem, têm de conseguir ganhar no próximo. A interpretação,
no ponto de vista tradicional, é igual a um jogo, um círculo fechado, estéril.
Em nada evoluímos, nem progredimos. Pelo menos numa perspectiva existencial.
Através das experiências da Fisica
moderna e à medida que se penetra na natureza do universo, o físico tem de
abandonar a sua linguagem para descrever essas mesmas experiências; nós, de
igual modo, quando vivenciamos esses mesmos fenómenos, não temos palavras para
os descrever.
O que difere entre ambas as
perspectivas parece estar na particularidade de, individualmente, podermos
vivenciar os fenómenos, enquanto nas experiências científicas se podem
descrever e interpretar (interpretações essas chamadas teorias ou modelos). E
aqui há, não só uma convergência no pensamento, mas idênticas descrições dos
fenómenos.
A diferença entre aqueles que, pela
experiência, vivenciam o fenómeno e as conclusões dos cientistas, reflecte-se
em que, estes, o fazem por via
intelectual e os primeiros pelo que integram quando é vivido. Ou seja, pode-se
explicar a diferença através de um exemplo muito simples como é andar de
bicicleta. Pode-se explicar como temos de nos equilibrar em cima dela, como
pedalamos e travamos, descrever os meios que utilizamos para andar, mas isso
não nos permite saber andar de bicicleta. É preciso praticar, sentarmo-nos nela
e colocar esses aspectos teóricos em prática, e se não tivermos essa
experiência que nos permite equilibrar, pedalar, travar, olhar para os lados
que, no fundo, é o que se chama andar de bicicleta, então não sabemos andar de
facto de bicicleta.
Reparo que cada vez mais as pessoas
procuram dar um sentido ao sentido que a vida tem, mas também que, cada vez
mais, se torna distante essa possibilidade. Provavelmente, porque não sabem o
que procurar ou reconhecer a sua meta.
No fundo, a vida é simples, também precisamos de parar um pouco e ficar
apenas a observar. Sermos espectadores de nós próprios.
O que escrevo, por exemplo, se não
vivido também por outras pessoas, está sujeito a todo o tipo de criticas,
comentários e divergentes opiniões que se baseiam nos mais diversos aspectos
intelectuais. Essas divisibilidades não são tão perceptiveis quando se trocam
ideias, devido à própria natureza da
linguagem; contudo agarramo-nos a conceitos da mesma maneira como as
pessoas que se agarram demasiadamente a factos e, quantas
vezes isso nos afasta delas, porque
percebemos que são muito comesinhas, mesquinhas, conflituosas, que se agarram a tudo e, até sem querer, acabam por
transformar tudo num conflito, sempre a confrontar-se com o que o outro disse e
fez ou faz. Portanto, quanto mais nos
agarramos aos factos e a construções mentais, menor é a possibilidade de
entender o que vemos e o que
escutamos. A isto chama-se ignorância no contexto em que o
apresento.
Por outro lado, quando temos a
receptividade de sermos espectadores de nós mesmos e não ficarmos a fazer
comparações com os outros e a pôr em causa tudo o que nos é exterior, quando,
de facto, fruto da nossa vivência, entendemos o que o outro nos transmite,
porque este também já vivenciou o mesmo, então estamos naturalmente de acordo.
Nada nos pode perturbar. O silêncio, usando-o como figura de estilo ou de uma
forma linear, é a expressão do conhecimento vivenciado, do Verbo para alguns,
para outros da experiência.
É, pois, esta simplicidade o lugar do
conhecimento onde não há segredos, sentidos ocultos, nem mistérios.
José Pais de Carvalho
Sintra, 2015
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