quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

d´Arte – Conversas na Galeria XX


Mercado Jemaã El Fna Autor António Tapadinhas
Tinta da China sobre papel 20x25cm

Sempre que visito um país, tiro apontamentos sobre os aspectos que mais me impressionam. Na minha terceira visita a Marrocos, fui finalmente a Marraquexe, a porta do deserto, e à praça que é o centro do mundo.

Em Roma, sê romano!
Parecia estar a atender o chamamento do muezim para a oração da noite: nesse momento estava a fechar a porta do quarto, onde deixara as malas, ansioso por sair dos portões do Club Med, que me isolava do mundo fervilhante de Marraquexe apenas entrevisto na pequena viagem de autocarro.
Antes de chegar à rua, já a cidade nos impõe o seu sortilégio: o barulho denso dos automóveis e motorizadas, e o bater ritmado dos cascos dos cavalos no asfalto martelam-nos os ouvidos; os cheiros dos gases de óleo e gasolina queimados, misturados com o odor mais consistente dos animais invadem-nos as narinas.
Na rua, a visão é do caos com uma só ordem: a desordem. Na avenida, larga como um campo de futebol sem marcações, circulam carruagens puxadas por parelhas de cavalos, carroças puxadas por burros, táxis, autocarros, motorizadas, bicicletas, todos a tentar fazer a ultrapassagem do vizinho da frente. Nesta competição, nem sempre ganha o mais forte: o automóvel mais moderno, arrisca-se a todo o momento a ser ultrapassado por um burro esperto, que consegue passar a carroça entre o intervalo dos carros. Nos poucos sinais que existem, quando cai o vermelho, os que estão na frente param - é esse o seu mal. Os que vêm atrás aproveitam e vão-se colocando sucessivamente à frente do que já parou. Os que estão junto ao sinal vêem aparecer o verde e reagem primeiro: ganham assim uns lugares na partida, ficando a corrida relançada, com hipóteses de vitória para todos.
Depois de andar algumas dezenas de metros, a confusão parece aumentar. Nós, peões, já não temos passeios e os motoristas parecem ter enlouquecido: não há rua, nem sentido de trânsito. Estamos na praça Jemaã El Fna, com superfície semelhante ao Terreiro do Paço, onde desaguam Tejos de ruas estreitas, de carros e pessoas.
Num dos lados, há uma muralha de tendas de comida, autêntica paleta de cores quentes: açafrão, caril, malaguetas, pimentos. Mais para o centro, a multidão ornamenta a praça em canteiros circulares de homens, que apreciam o trabalho dos ginastas em jogos de forças combinadas; alguns ouvem grupos musicais que tocam música tradicional, constituidos por um violino e dois ou três tambores; outros preferem rir-se das habilidades dos macacos amestrados a imitar pessoas; outros escutam, atentamente, alguém que diz não sei o quê, com grande convicção e energia; outros, ainda, gostam do terror atávico causado pelas serpentes que parecem dançar ao som do pífaro do seu encantador. Por entre os grupos andam homens de fatos encarnados e verdes, com pratos de metal amarelo, grandes chapéus na cabeça, a tocar em pequenos tambores, que oferecem a sua beleza para figurar numa fotografia, a troco de algumas moedas. Outros arranjaram uma estratégia mais simples para ganhar dinheiro: tocam um tamborzito, fazem uma careta e, se nem sempre provocam um sorriso, quase sempre arrancam uma moeda.
Metade da praça é disputada, a palmo, por peões, que tentam passar na terra de ninguém que a qualquer momento pode ser atravessada por um veículo vindo de qualquer ponto cardeal.
Estranhamente, não se ouve buzinar os automóveis: talvez o barulho dos motores, o bruá da multidão, os guinchos dos animais, o toque dos tambores, o silvar das serpentes, não o deixem ouvir, ou, com maior probalidade, o nosso cérebro se recuse a registar esse som, por mais habitual, dando prioridade a tudo o que é novo: cheiros, línguas, cores, gente, animais.
É difícil (impossível, direi), ser apenas espectador: logo que olhamos para alguma coisa, o vendedor atento, pergunta-nos a nacionalidade, e oferece o objecto, por um determinado preço. Ser português, neste caso, é uma vantagem, porque acham que nós somos pobres como eles. Conversamos, discutimos, num linguajar franco-anglo-luso-espanhol; quase nos insultamos, porque é assim nas grandes famílias. Depois de consumado o negócio, é assinado o tratado de paz. Por mim, apetece-me sempre abraçar o meu novo amigo, que teve a gentileza de vender um objecto por um preço tão acessível.
Ainda estava a fazer as contas com a minha esferográfica e já ele me estava a propor a sua troca por um espelhinho, com um aro de metal…
E tem sido assim todos os dias… mesmo no dia 11 de Setembro de 2001, nesta terra, não muito longe daquela que viu nascer três grandes religiões.
Nos escombros e trevas que a televisão teima em mostrar, há uma luz que ilumina e elimina o nosso terror: do outro lado, afinal, estão homens como nós.
Eu, agora, vou para o meu quarto e juro que vou pensar numa estratégia, para comprar pelo melhor preço um casaco de cabedal que vi numa loja.
Guerra, qual guerra?

15 comentários:

AAG News disse...

Tu falas bem e falas muito...
Diz lá se pelo menos fumaste uma ganzasinha do melhor hax de lá?

Abraço do Luís

MJC disse...

Gosto bastante do quadro mas, confesso, fiquei absolutamente fascinado pelo prosa.
Para além de escorreita e cheia de imagens, sons, cheiros, cores, gente, ... não tem nada a mais, antes pelo contrário tem a menos porque me apetecia continuar a ler, que é como quem diz visitar Marraquexe pelos teus olhos e pela tua pena.

Nunca fui a Marraquexe embora gostasse de ir (desejo que agora se acentuou após a leitura desta crónica), tinha construído algumas imagens no meu imaginário através do livro "As vozes de Marraquexe" de Elias Canetti (Prémio Nobel da Literatura). Nesse livro, há uma presença que, diria, se impõe a todas as outras e que é a dos camelos. O autor fala mesmo de uma praça onde se transacionavam e abatiam camelos. O cheiro activo do sangue dos camelos abatidos excitava todos os outros que se alvoraçavam na sua voz natural enchendo a atmosfero de um barulho ensurdecedor. É óbvio que também fala de outras coisas. De outros cheiros, cores e do pôr do sol.

Com a crónica do teu diário (?) enriqueci consideravelmente o meu imaginário relativamente aquelas paragens e o apelo de as descobrir por mim próprio.

Admiro a tua pintura/desenho e tua prosa ritmada e empolgante.

Obrigado por esta partilha e pela viagem proporcionada.

Um abraço,

Croca

Luís F. de A. Gomes disse...

Tal e qual, na aguarela que apresentas com as plavras e com a guerra que fica a ridículo sempre que os homens se deixam levar na coexistência que obviamente pode ser pacífica e tantas pontas tem para se fazer de laços aos mais variados níveis.

Tive bons encontros em Marrocos e algumas conversas que para sempre guardarei na memória e no coração.
"-On ce peux dite toute lá verité." -Disse-me certa ocasião um livreiro, em Casablanca, a ainda branca mas já muito desfigurada cidade de Ingrid, a quem perguntara por compêncios de História daquelas paragens e que depois de me explicar que não encontraria leituras interessantes e desinteressadas a esse nível, acabou por me indicar um estudo de uma académica da Universidade local -"Au-delà de Toute Pudeur", Soumaya Naamane-Guessous- em que mais facilmente poderia sacar elementos para compreender a realidade marroquina no que diz respeito à tensão relativa à modernidade que abala aquela sociedade, geograficamente tão perto de nós. E depois de uma boa conversa sobre literatura marroquina, lá me ofertou -foi mesmo um presente- um exemplar de "L'Énfant de Sable", do Tahar Ben Jelloum que num belo fresco nos pinta o mundo de tempo parado sobre o qual aquele estudo se debruça. Explicou-me então as dificuldades da expressão de certos pensamentos e a ela associou o exílio forçado daquele Autor a quem escondia as obras em lugar esconso, atrás do balcão. Foi aí que ele expressou aquela frase que tem tanto de precisa como de bonita, pois, mesmo aqui neste lado do mundo que nos habituámos a apelidar de livre, só por cegueira não seremos capazes de ver que afinal, "não se pode dizer toda a verdade."

E foi com aquela conversa e aquelas leituras que eu percebi como, tal qual o teu lápis a recria na Humanidade de que é prenha, vemos tão poucas mulheres nativas naquela praça.

Belo quadro, portanto, profundo, no olhar, perante o qual, até o texto ainda mais belo que o acompanha, não deixa de ser uma redundância que, para nós, temos que agradecer na forma de um duplo presente.

Aquele abraço, companheiro

Luís

A.Tapadinhas disse...

Luís: Podes não acreditar, mas fumei tanto...

...que já não me lembro!
:)
Abraço,
António

P.S. Parabéns! Já tens o muro arranjado...

A.Tapadinhas disse...

MJC: Tomei nota do livro que mencionas. Cada vez mais estou a ler menos! Perdi o hábito de ter um livro na cabeceira da cama, ou em cima da mesa da sala, ou em cima do parapeito da janela da casa de banho, ou... ou... ou... Parece-me que o tempo que tenho não chega para pintar e ler sobre pintura e pintores!

Mas quero dizer-te, francamente, que eu e os camelos não nos relacionamos muito bem! Falo, daqueles, dos verdadeiros, que se ajoelham para nós lhe subirmos para as bossas... Não sei porquê, todos (os camelos) se comportavam bem até eu tentar subir para a sua garupa. Mal sentiam, ou cheiravam, a minha aproximação, começavam aos pinotes como aquelas máquinas dos americanos a fingir que são cavalos, ou burros, ou bois... Terei sido, porventura, um açougueiro de camelos noutra encarnação? Talvez naquela praça de que falas...

Se fui já estou curado! Não tenho nenhuma vontade de abater camelos, nem destes de que falo, nem dos outros de quem é melhor não falar!

Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Luís: Para não me esquecer, eu é que agradeço as palavras com que ilustras as "Conversas na Galeria"!

Sem a tua presença, e de outros amigos que me honram com a sua disponibilidade para esta troca de ideias, não teria atingido este número redondo de vinte semanas de exposição.

O meu profundo reconhecimento para todos.

Voltando a Marraquexe.
Numa visita a um típico mercado de rua, um ancião, perguntou-me, em espanhol, se eu era português. Quando eu disse que sim um sorriso de felicidade iluminou-lhe a face. Pediu-me, não umas moedas, nem para lhe comprar qualquer coisa, pediu-me para que eu fosse a sua casa, que ficava perto, segundo afirmou, para beber um chá. Algo, melhor, muito surpreendido, numa daquelas decisões repentinas que às vezes tomamos, acedi ao convite. Depois de avisar a Arlete e o guia, do meu destino, lá fui com ele.

Para abreviar.

Depois do chá, que foi bebido com todos os requintes, contou-me que era viúvo e que o seu filho estava a viver em Portugal, fugido já não me lembro do quê. Queria que eu levasse comigo para Portugal um embrulho com objectos pessoais e algum dinheiro, para a morada que ele tinha escrita, porque segundo me disse, se fosse ele a enviá-la, causaria problemas a si próprio e, quem sabe, ao filho.

Tentei dissuadir o homem mas não consegui. E trouxe a encomenda, e enviei-a para a morada que estava escrita e... final da história.

Não sei se se poderá retirar alguma lição do que aconteceu.

Pensando com frieza, como o Velho do Restelo pensaria, arrisquei-me a ter ou a causar problemas a outras pessoas.

Mas... Acho que devemos confiar na nossa experiência de vida, e acreditar na bondade das pessoas que nos rodeiam.

Sei que fiquei muito orgulhoso do que fiz!

Aquele abraço,
António

AAG News disse...

Primeira Informação!

Dia 22 de Janeiro, sábado às 19h, será o lançamento da minha revista: "Aventuras de Jerílio no séc. 25 - 1º episódio.Tudo Começou em Máfio" com sessão de autógrafos pelo autor, oferta de bandanas desenhadas a quem comprar a revista, beberete e belisquetes, passagem de filmes, música ambiente selecionada, o Luís Carlos também lançara o seu livro em papel.
Sessão de poesia dedicada à crítica do políticamente correto, tragam as vossas poesias mais politicamente incorretas e a melhor ganhará uma revista.
Os Arquivos Guerreiro que agora completam 10 Anos garantem um ambiente de Festa e Alegria Geral.
Os convites personalizados serão enviados para todos os leitores do Estudo Geral que os solicitem.
É favor que os leitores deste Blog de quem não tenha o mail, que o mandem para:

azulejariaguerreiro@gmail.com

Mais informações brevemente em:
www.azulejariaguerreiro.com

luis santos disse...

As Conversas na Galeria começam a prometer. Informações em primeira mão, convites e até anúncios de lançamento de livro que o próprio autor desconhecia... Mas a confiança e a amizade dão para tanto.

Eu tenho uma viagem a Marrocos para a troca, Chechauan como destino, 200Km para o interior. Via Ceuta e não via Tanger como penso que é o caso de Marraquexe.

Foi uma grande viagem. Fomos de transportes públicos. Saímos da estação de Alhos Vedros no comboio com um rádio de pilhas na mão, moxila às costas. Setúbal, Rosal de La Frontera, Sevilha, Granada, Algeciras, Ceuta, Tethuan, Chechauan (é possível os nomes das cidades marroquinas não estarem correctamente escritos correctamente, mais o tempo leva algumas memórias e agora não há tempo para ir rever). Depois do comboio, autocarro até Espanha e mais toda a Espanha de autocarro, barco entre Algeciras e Ceuta, de novo autocarro e, por fim, táxi. E, depois, há que regressar.

Algumas memórias rápidas: os fumos, os sons, a música, os cheiros das frutas empilhadas pelo chão, os ditos camelos, as casas pequenas e misteriosas, os cachimos de "Kife", o snifar do rapé, os marroquinos de mão dada, a sesta no chão da praça ao lado do passeio, o chá de hortelã pimenta e as abelhas que esvoaçavam em torno do chá, as flores, as mulheres de rosto coberto, as tapeçarias, os cabedais, as sedas, muito artesanato. O Hotel Mauritânia, super barato, muito bonito, ouvir a toda a hora "Cascais, Estoril, sardinhas assadas", o magnífico pão à saída do forno, o majestoso guizado de sardinas comido à mão, o convívio, o beber alccol em Marrocos como quem fuma passas em Portugal, e............ agora não dá para mais. Porque como diz subtilmente o Luís "-On ce peux dite toute lá verité."

A.Tapadinhas disse...

Luís (AAG News): Nunca respondi a tanto Luís em tão pouco tempo!

Agradecemos essa informação em primeira mão, dada neste espaço!

Tenho a impressão que não posso ir, porque estou no período de reflexão para votar no Presidente...
:(
Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Luis (santos da casa): Afinal, só o MJ, ainda não gozou as delícias das noites de Marraquexe!

A maneira como descreves a tua viagem faz-me pensar que continua presente na tua memória.

E essa é uma das características mais salientes de determinadas emoções que experimentamos no decorrer das nossas vidas: viagens, relações, o que for. Este tipo de viagens tem um conjunto de sensações em que estão envolvidos todos os nossos sentidos e por isso, não podemos escapar: ficam gravados para sempre!

Agradeço a partilha!

Abraço,
António

AAG News disse...

Tu tens um grande sentido de humor, ó António! Os Arquivos Guerreiro são o melhor sítio para a reflexão, 9 em cada 10 refletores eleitorais recomendam ir aos Arquivos Guerreiro só para refletirem, até o Leonel COELHO disse que iria lá refletir :D

A.Tapadinhas disse...

Luís (AAG News): Então eu faço parte do "grupo dos 9"...
:)
Abraço,
António

AAG News disse...

Momento de Reflexão Coletiva nos Arquivos Guerreiro!

Seguindo a excelente ideia do grande refletor eleitoral António Tapadinhas, os Arquivos Guerreiro no dia 22 e quando estiverem reunidas um mínimo de pessoas necessárias para a reflexão, propõe a todos um momento de relexão eleitoral coletiva, onde refletiremos todos em conjunto sobre as eleições presidenciais, a reflexão será durante um minuto inteiro e cada refletor refletirá conforme bem o entender, se desejarem durante o Lançamento da revista, "Aventuras de Jerílio no séc.25", podem interromper pelo menos mais duas vezes o evento, para refletirmos de novo, porque pode haver refletores que se tenham atrasado para a primeira reflexão e não tenham tido oportunidade de refletir e outros que já tenham refletido mas que achem necessária uma nova reflexão porque a primeira reflexão não foi suficientemente reflexiva ou não tenham refletido corretamente.

ARQUIVOS GUERREIRO, O MELHOR SÍTIO PARA REFLEXÃO ELEITORAL DE PORTUGAL!

Arquivos Guerreiro DIA 22 a Partir das 19h lançamento da revista e vários minutos de reflexão eleitoral profunda.

Rua Duarte Pacheco nº6, Alhos Vedros.

(obrigado pela inspiração, ó António)

AAG News disse...

Arquivos Guerreiro, Rua Duarte Pacheco nº4, (nº6 é a Oficina)
Alhos Vedros

MJC disse...

Tanto que se aprende aqui nesta galeria.
Os relatos de viagens feitos a várias vozes, com cada um referindo o que mais prendeu a sua atenção são também uma forma de viajar. Óptima (!),nestes tempos de crise em que viajar fisicamente está mais difícil.
Deseja-se, portanto, que prossiga a troca de recordações e impressões "à entrada do deserto" até que o apelo para visitar aquela cidade mágica se torne de tal forma imperativo que comece a definir o melhor calendário para a viagem.

António, é provável que não consigas encontrar o livro (provavelmente está esgotado) de modo que poderás sempre contar com o meu emprestado.

abraço geral.

croca