domingo, 23 de janeiro de 2011

Raúla

Gigante Caído, Acrílico sobre Tela 30x40cm,
Pintura de António Tapadinhas

Deambulando por aqui e por ali vão-se encontrando coisas.
Umas alegres e o riso solta-se, outras tristes e a alma guarda-se.
Na bissectriz de ambas labuta a mente.
Cresce, latejando.
Outro dia, conheci uma árvore.
Gostou de mim, penso, pois abriu a alma e disse-me em clima de confidência:
«Raúla é o meu nome»
«Muito prazer», disse eu.
E agradeci a confiança de me mostrar a sua dimensão conversável.
Não se ficou por aqui. Sentindo-se tranquila – e sem ninguém por perto que pudesse interromper ou violar o clima de confidência – foi por ali fora dizendo:

«Eu já fui muitos(as). Iluminava-me ao clarear de cada dia e recolhia-me com cada poente em que não conseguia verbalizar a doçura que me invadia. E tinha sempre os olhos postos no dia que ia nascer. Amanhã. Nos intervalos, enquanto o dia se consumia, falava com meus irmãos disfarçando a voz no voltear da brisa. Havia a proximidade do mar e o bafo da maresia impelia-nos a dançar. E nós dançávamos, mesmo que para isso tivéssemos de inventar um vento que nos animasse. Do alto da minha copa, em momentos de reflexão acarinhando a alma, avistava o mar. No meio do mar, um pouco lá ao fundo, brilhava uma ilha. Terra, no meio do mar. Linda! Ponto de apoio partida-chegada-partida p’ra mais além, abarcar o longe, torná-lo mais perto. Um dia – há sempre “um dia...” soando a desgraça – agitou-se o mar. Criaram-se ondas agitadas, enormes, e, num movimento incontrolável (para mim), cobriram a ilha, submergindo-a.
Terá desaparecido? questionei-me. Não! Mudou apenas de estado e passou a pulsar, inteira, dentro do mar.
E o mar, que o sabe e a sabe, ficou maior. Mais relativo também.
Também comigo aconteceu. A desgraça...

Chegaram um dia as máquinas e, sem dizerem nada, começaram a derrubar os meus irmãos. Caíram ao meu lado aos milhares (1), e eu, por cada um que caía, ia morrendo um pouco também até pensar que não havia mais nada em mim que pudesse morrer. Julguei-me morta também.

Enquanto assim me recolhia e abstraía, fui-me tornando fraca. A fraqueza invadiu as minhas defesas e fiquei mais vulnerável do que nunca. Da minha fraqueza se aproveitaram. Invadiram-me e violaram-me e eu, ferida, abri-me para que melhor e mais fundo me atingissem. As feridas cobriam já o meu tronco, ramos, folhas, e eu não reagia. Morria lentamente sem saber, sabendo.

Um dia logo pela manhã, ia já longa a agonia, duas aves graciosas escolheram o delicado entrançado dos meus ramos mais altos para iniciar a construção do ninho que protegeria os seus ovos e garantiria a sucessão com novos filhotes.
Chegava-se a hora, o tempo urgia, para eles.
Insinuava-se o macho, em intermináveis paradas nupciais, exibindo a exuberância da sua plumagem, gorgolejava a fêmea rendendo-se, receptiva.
Sob o meu olhar desarmado, desenhava-se o repetido mas sempre novo e mágico ritual que garantiria a continuidade, a renovação e o futuro.
Senti um calorzinho pelo tronco acima e a seiva ganhou um novo fluxo.
Ainda que extremamente débil, senti que readquiria um sentido para a vida, que valia a pena passar além da dor e continuar a maravilhosa aventura que, apesar de tudo, constitui o viver.
Passados dias neste torpor doce, reagindo e recuperando, senti impor-se dentro de mim uma decisão inabalável. Olhando a toda à volta, proclamei na minha voz de árvore: Não morro!
Reactivei defesas, estanquei feridas e alindei-me o mais que pude. Agora estou aqui, renovando-me a cada estação e dando frutos mesmo sem que me peçam. Inda agora aqui cheguei...


E assim, aquilo que pretendia fosse um simples passeio contemplativo e retemperador, acabou por se saldar numa maravilhosa lição sobre a atitude perante a vida, até mesmo nos revezes com que ela por vezes nos surpreende.

Foi um prémio à atitude de, num momento mágico e feliz, ter havido a capacidade de sair de dentro do casulo fechado em que tantas vezes se blinda o ser individual que a cada um assiste e, abrindo-se, aceder à possibilidade de escutar as vozes que vogam soltas na brisa.

(1) – Referia-se ao abate do saudoso Pinhal do Castanho

MJ

5 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Muito prazer em te conhecer, Raúla!

A ti, já te conhecia, sabendo da poesia com que escreves prosas. Esta é, apenas, a sua confirmação.

Estou muito orgulhoso pelo casamento do meu Gigante com Raúla.

A árvore é um dos símbolos fundamentais das culturas arcaicas, o princípio de todas as coisas, o pilar da criação do mundo.

Mas há outra concepção, menos mitológica, digamos, mais científica do mundo das árvores. Está provado que elas comunicam entre si, através da emissão de sinais químicos, as feromonas. Quando determinadas espécies são atacadas por lagartas surgem alterações químicas nas suas folhas das que as tornam menos saborosas. Esta informação é propagada pelo ar para as árvores vizinhas que procedem de imediato à alteração do seu sabor. O mesmo esquema é utilizado pelas folhas das acácias quando começam a ser comidas pelas girafas.

Uff! Tudo isto para te dizer que a tua conversa com a Raúla, faz todo sentido, para mim. Quando pedi para se colocarem perto da árvore para eu os fotografar, foi para fazer um quadro que eu visionei com a ajuda de Raúla...

Agora está tudo certo: o Gigante, com nome, e o texto, talvez o seu epitáfio...

Abraço,
António

luis santos disse...

Lembro-me bem do Pinhal do Castanho. Era por ele adentro que íamos buscar a lenha para com que fazíamos as enormes fogueiras nos santos populares. Passávamos a vala real, já em pleno pinhal, e lá empilhávamos enormes braçados de madeira, agulhas de pinheiro, rosmaninho seco que tornavam portentosas as labaredas que nos engoliam quando corajosos as atravessávamos de um salto.

Dos restos do Pinhal Castanho já só existe um pequeno montado que vai subsistindo entre o lixo com que o adornam, onde alguns sobreiros vão agonizando lentamente por falta de cuidados, onde se afastam as árvores para aumentarem caminhos desnecessários. Há falta de sensibilidade da administração local para com as árvores.

O gigante caído que mostra a pintura e de que fala o texto é um dos últimos resistentes do abate que se deu sobre o velho Pinhal. Um enorme pinheiro que, agora, dado o seu peso e idade, um vendaval conseguiu mandá-lo ao tapete, deixando-lhe as raízes expostas às agruras do tempo.

Até que merecia alguma atenção. Mas como e de quem?

MJC disse...

O mundo é mais do que nós percepcionamos e sabemos.
Isso é bem certo.
Ao longo da vida já constatei por várias vezes tal facto pela evidência de acontecimentos.

Perante este "Gigante Caído", este texto, escrito já a alguns anos, revisitou-me novamente sugerindo-me, talvez, a sua partilha com pessoas próximas, amigas, e com quem amiúde sentimos convergência nos olhares e uma comunhão que dispensará as palavras. Sim, até porque há coisas que se não sabem dizer. Entendemo-nos e pronto.

Obrigado pelos vossos comentários. Gostei de vos apresentar a Raúla.

Abraços,

MJ

Diogo Correia disse...

Amigo Croca! Uma grande menssagem. Protegamos todas as árvores do mundo pois são elas que mantêm os homens vivos. Parabens

Abraço
Diogo

MJC disse...

Amigo Diogo, obrigado.

Fico contente de teres gostado.

Quanto às árvores, bem eu diria que as árvores somos nós.

abraço,

MJ