segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

FACES

MALTA

O arquipélago que constitui a república de Malta é um conjunto de três pequenas ilhas e uma mão cheia de ilhéus. No primeiro caso, a ínsula homónima e, por ordem de grandeza, Gozo e Comino; no segundo, aquilo a que os naturais chamam de St Paul Islands e uma outra que parece ter-se separado de Comino, além de algumas formigas em redor da maior parcela.
Predomina a palidez das formações calcárias salpicando um acastanhado solo de um longo período seco estival, contudo, em quase todos os vales que se estendem entre as pequenas colinas secundárias que fazem estes pedaços de terra emersa, onde os moinhos de vento permitem esventrar o subsolo, a água faz o milagre do verde, umas vezes com tamareiras, outras, porque alguém deste planeta já pisou a Lua, com os plásticos e as armações de estufas próprias a um país em pleno desenvolvimento.
Terá sido alhures um território arborizado? A esparsa vegetação mediterrânica que, hoje em dia, se observa, não autorizará uma afirmativa peremptória, ainda que, a um outro nível, seja visível que a hominização das paisagens tem delapidado alguns depósitos rochosos, ao ponto de deixar profundas rochas rectangulares, tanto em Malta como em Gozo que, uma vez abandonadas, curiosamente, foram adaptadas à produção agrícola.
As estradas que atravessam e cruzam estes terrenos sofrem breves ondulações e apenas a costa do lado da Golden Bay é escarpada, na restante, aqui e ali, dedeada por reentrâncias com poucos e pequenos areais, o manto argiloso entra pela espuma das ondas, como se se tivesse solidificado pelo efeito de uma mãe de rendeira.

Malta é uma pequena ilha, castanha e sequiosa –para os estrangeiros, uma terra de fantasia.
Quando os autocarros rolam pelas estradas e nós, pensando em velhos piratas, vemos o mar azul todo poderoso, então compreendemos a razão de ser dos santos cristãos pintados em pequenos altares encravados acima do espelho retrovisor e entendemos a devoção de um povo que, tal como o ar que respiramos, nos rodeia por onde quer que andemos.
De certeza que os malteses vivem sem as idolatrias de qualquer fundamentalismo, mas sente-se que são crentes, pois, de outra forma, que significado poderíamos atribuir ao colorido das procissões, com as imagens dos santos ondulando sob o efeito da brisa e o acompanhamento de bandas de música? As bandeiras flutuando, amarelas vermelhas e laranjas, empatando o trânsito e fazendo com que a nossa deslocação demore mais que o habitual.
Aparentemente existem diversos tipos de malteses. As mulheres têm cabelos pretos e olhos escuros, ou são louras, não tanto como as britânicas mas mais como as berberes. Os homens são similares aos variados rostos mediterrânicos, quer da parte norte quer da sua margem sul; alguns têm o aspecto da presença colonial britânica e muitos deles –talvez a maioria?- resultam de uma antiga mistura que esta ilha, desde a mais remota noite dos tempos, provavelmente anteriores à sedentarização, tem possibilitado entre os dois lados deste mar que é lago, tal como o Infante D. Henrique, de Portugal, viu que era.

Não há miséria visível em Malta.
À vista desarmada, sem um grande nível de consumo, as necessidades básicas estão resolvidas, pelo menos, naquilo que poderemos descrever como o mínimo necessário.
Alguém me referiu uma estatística que, a ser verdadeira, é claro, só poderei apelidar como desconcertante; perto de noventa por cento da população tem residência própria e à volta de metade dos habitantes possuem uma segunda casa.
Há falta de mão de obra em alguns sectores e muitos são os casos em que o tempo disponível possibilita um outro emprego.
A ausência de grande ostentação de modo algum está em contradição com padrões de conforto acima da pobreza.
“-Poor’s, only the foreigners.” –Afirmou-me uma narradora.
Estamos longe de um país rico, mas não será pelos malteses que virá mal ao mundo.

Paola, doce Paola para quem saborear os algodões salpicantes do azul mediterrânico do teu vestido de noite

a menos que não se afoite
e se não queira perder nestas ruas de cidades brancas.

Sliema dorme, sob uma Lua esplendorosa, embalada pelo dedilhar da espuma nas rochas da beira-mar

e eu vou para os braços da minha loucura que termina no júbilo da osmose dos corpos encantados.

Sliema, Agosto de 1993

6 comentários:

luis santos disse...

Bela Crónica de Viagem, acrescida de um final de grande beleza poética.

A.Tapadinhas disse...

Conseguiste transportar-me até Malta, com as descrições que fazes do arquipélago. O poema é muito belo!

Senti o que dizias, porque ainda sinto nas narinas o ar salsuginoso, na minha retina ainda permanece o azul e branco das ilhas que visitei (Rodes, Santorini, Mykonos...), no cruzeiro que fiz na minha visita à Grécia.

"Estamos longe de um país rico, mas não será pelos malteses que virá mal ao mundo".

Concordo com o que dizes sem os conhecer. Se tivesse de indicar de todas as visitas que fiz, quais os habitantes de quem menos gostei, apontaria os atenienses. Mas nas ilhas tudo muda, até as pessoas!

Abraço,
António

MJC disse...

Eu também gosto.
De tudo.
Conteúdo, métrica, fotos,... mais o que a minha imaginação se permitiu divagar a partir da descrição.

Até apetece perguntar: depois de Marraquexe e Malta qual o destino que se segue ?

abraços,

croca

Luís F. de A. Gomes disse...

Pequenas notas, diria que na verdade se pretendem enquanto um pequeno exemplo de crónica de viagem; fico satisfeito por ver que assim foram elas entendidas pelo que a escolha para integrar esta compilação terá sido acertada.

Aquele abraço companheiro,
Luís

Luís F. de A. Gomes disse...

Em tudo as ilhas são universos peculiares, provavelmente pela mesma razão que cada um de nós o é e não é por acaso que é tão corriqueira a analogia entre os homens e esses pedaços de terra emersa rodeados de água por todos os lados.

Com a excepção de Rodes, conheço as ilhas de que falas e outras, bem como essa metrópole imensa que vista do Monte Athos quasi sempre tem uma película velada em que a névoa se mistira com a fumarada que a cidade exala, sobretudo pelos tubos de escape de um trânsito intenso e engarrafado. A seu tempo e por interposta pessoa, também aqui terão as suas honras de cenário.

Não sei porque dizes isso dos atenienses, mas achei a cidade suja e maltratada e, como tanta outra coisa, o lixo não do céu e a desarrumação sempre dependerá de haver quem arrume ou não desarrume que também poderá ser o caso.
Mas guardo boas recordações e sobretudo emoções da cidade de Péricles, onde mantive instrutivas conversas sobre esse interface entre o mundo de cultura otomana e o Ocidente que, pela afirmação da tradição grega ortodoxa, acaba por se confrontar longe dali, nessa outra ínsula, Chipre, onde ainda persiste um muro de vergonha de que tão pouco se fala, aqui, nesta lado de cá da Europa. Curiosamente a Grécia, enquanto estado nunca teve existência histórica, foi uma invenção da geo-política do século dezanove e os gregos têm por isso a particularidade de reunirem as memórias de uma colonização ainda mais ou menos recente com um olhar filtrado pela historiografia sobre um passado grandioso de múltiplas pólis que se auto-governavam e regularmente competiam entre si, quando não se combatiam umas às outras. Terá vindo daí o clima que propiciou a antipatia que sentiste? É uma hipótese, mas seguramente sem sentido, na verdade, apenas um pretexto para lembrar que afinal ali se encontra um dos berços da nossa civilização, no aspecto fundamental da nossa tradição científico, o mais importante de todos.

Malta por sua vez, sem ter alguma vez tido colónias gregas, terá sido nessa época clássica, uma espécie de zona de retiro e de férias, primeiro de cidadãos ricos de cidades como Siracusa, na vizinha Sicília a que se seguiram os patrícios e soldados reformados de Roma, quando este Império anexou aquela civilização, provocando a primeira resistência grega à ocupação de que o Golding se serviu para escrever essa obra prima que dá pelo título "A Duas Vozes". Mas na manta de retalhos que compõe a expressão cultural da sociedade maltesa contemporânea, lá está o legado grego, desde logo ao nível da língua própria que na daqueles têm uma das suas bases de origem.

Mas são ilhéus e se outrora foram piratas e andarilhos do mar, hoje são um povo pacífico que leva uma vida tranquila, bem presente naqueles jantares de pique-nique que é tão vulgar ver as famílias fazerem sob as estrelas, em mesas postas junto ao mar. Ao que parece, não se terão esquecido que a vida é para se gozar.

Tenho a certeza que gostarias de passear e conviver nesse país, da mesma maneira que eu gostei de ali ter regressado.
E depois ficarias encantado com a arte que vamos encontrando nas Igrejas Católicas Romanas e, em La Valleta -onde há aquele que foi o primeiro teatro moderno construido em alvenaria e logo em tempos de governação de um português, o Teatro Manoel- com o presente especial de uma das obras de Caravagio, na Catedral de São Paulo; "A Morte de São João Baptista" -não sei se o nome é exactamente este- uma maravilha que jamais seria capaz de descrever.

Bem e por agora passo, mas deixo aquele abraço
Luís

Luís F. de A. Gomes disse...

Pois é meu amigo, pelo menos aqui, pelo "Faces", esse virá na próxima semana.
Esperemos pois que possa voltar a contribuir para que soltes a imaginação. Afinal, é esse o melhor prémio para quem escreve.

Até lá, aquele abraço
Luís