terça-feira, 5 de abril de 2011

FACES

A EMPREGADA DOMÉSTICA

-É irmã do Zé, daquele empregado que fomos buscar ontem à noite. –Disse ele de imediato, enquanto ziguezagueava veloz entre a corrida automobilística que é o trânsito no Rio de Janeiro. –O meu braço direito. Interrompeu-se para fazer uma ultrapassagem interior na curva que introduz a marginal do Leblon. Questão de segundos, nem espaço deu para uma colherada. -Mas a Jussára é minha empregada mas tu não tá vendo nada, cara. Ela não é uma qualquer. A mulher aí escreve e estuda por ela própria. –Olhando-me em velocidade proporcional à do automóvel, como a certificar-se da expressão da minha reacção às suas palavras. Ele mantinha o seu sorriso de rosto franzido que o caracterizava na forma de contactar o vulgo. Continuava disposto a narrar: -Inclusivé, ela escreve peças de teatro e já encenou e apresentou algumas delas. Coisa simples, claro, coisa de clube de bairro, de parróóquia. Mas também já ganhou dinhero com as peças. Ela escreve a peça, arranja os actores e encena e depois ela vende às escolas. Vai junto da directoria, faz um trato que nem precisa ser assim muito formal nem nada e aí ela apresenta a peça e cobra os bilhetes. Paga uma taxa à escola e aos actores e o resto fica com ele. Ela é muito esperta. –Voltando a encarar-me num instante de recta desobstruída. –Até já teve de representár. Um dia uma actriz teve um problema, não pôde aparecer e ela a substituiu na hora. -E conseguiu? –Intrometeu-se a Luísa, debruçada entre os dois bancos da frente. -Claro que conseguiu. E foi bem na hora. Mas é a cara que escreve os textos. Ela sabe aquilo que os actores têm que dizer. E como é ela que encena também sabe como eles têm que dizer. Aí ela tomou o lugar da outra e a coisa deu certo. Estava prolífico e parecia adivinhar-me os pensamentos. -Eles são quatro irmãos. O Zé e mais três garotas. As outras são bonitinhas, a Jussára até que nem tanto. Mas é por causa dos problemas que ela tem com a saúde. Por isso ela tem a pele e os dentes estragados e é magrinha. Mas até que nem vivem assim muito mal não. Para o padrão dos pobres brasileiros, especialmente aqui no Rio de Janeiro… Mas eles são todos muito nervosos e têm aqueles tiques. Você reparou? Aqueles gestos que o Zé faz com o queixo. Eles são todos assim. E são gagos. A Jussára, por exemplo, tem que andar medicamentada. Eu é que pago. Se não ela não tinha como se tratár e podia ter um atáque de epilepsia. Mas é boa moça. É boa gente. Eu pago um ordenadão de mil e duzentos reais ao Zé, mas eles sabem dar valor. Aquilo é gente que veio da favela, meu irmão. Eles agora moram ali em Jacarepagua mas nem sempre foi assim. Quando vieram par’o Rio foram viver bem pertinho onde eu tenho a minha empresa no mercado. Foram para casa de um tio materno, na favela do môrro do alemão. Vinham fugidos do padrasto. O pai morreu quando eles eram pequenos e aí a mãe arrumou um outro cara. Mas o homem batia-lhes e se a mãe os defendia ela também levava. O cara andava sempre em cima das mocitas e chegou até a tentar estrupár todas três. E sabe o qu’é qu’êles fizeram? Os garotos, o Zé tinha aí os seus quinze anos e as irmãs são mais novas, eles contrataram um sujeito p’rá matar ele. Só que o cara deu um tiro nele mas o bicho estava com sorte e não morreu. Foi parar ao hospital mas salvou-se. E os garotos tiveram que dizer à mãe e fugiram todos par’ó Rio de Janeiro. O facto de não ser hora de ponta permitia conciliar a história com a condução de um veículo rápido. Passávamos o aterro do Flamengo quando ele concluiu: -Mas é por isso que a Jussára tem muitos problemas com os nervos e com a saúde e é por isso que ela não consegue outros empregos melhores. Ela às vezes pega um trote e está uns dias sem trabalhar e aí ela perde o emprego. Não consegue segurá-lo. Mas ela não é parva não.

Rio de Janeiro, 10 de Agosto de 1995

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Ainda bem que a descrição da viagem não durou mais tempo! Não sei que mais virtudes intelectuais e ignorados problemas físicos seriam descobertos à protagonista da história. A todo o momento estava a pensar que se seguiria: "Para não falar dos tiros que ela levou na favela do alemão, que lhe desfizeram a parte direita da cara, cegando-a, e obrigaram à amputação do braço... E logo do direito! O que ela lutou para aprender a fazer as coisas com a esquerda! Porque da perna ela já não se queixa, por ser de nascença, sabe como é? Uma é mais curta que a outra. Para ver que ela não se importa, ela diz, com graça, que pode andar com um pé no passeio e outro na estrada, sem coxear! A marreca apareceu-lhe..."

Os brasileiros dizem mesmo "hora de pinta" ou é gralha?

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Não é que rico nasça sem mazelas, mas pobre é que usa não ter como fugir a elas. Se a vida do primeiro é pêra doce? Como não é o enfado de ter que escolher entre possibilidades? Já a do segundo é de trepar e não é às árvores não que a essa, só se for a da busca do pão. Coitados dos pobres que são tão feios, coitados dos bichos que vivem nos lixos, coitados dos coitados que para serem alguém têm que se esforçar como se tivessem que ser muitos, coitados daqueles que nascem afundados naquilo que o Raymond Barre teorizou enquanto o círculo vicioso da pobreza.
Verdade verdadinha é que este mundo seria bem mais elegante sem eles. O problema é que talvez fosse mais pobre. É que afinal o mundo não veio da palácio. Não é que veio das cabanas primitivas onde homens e gado comungavam o espaço?

Já agora, vamos cantar a Internacional?

Aquele abraço, companheiro
Luís

PS
Gralha; já está corrigida.