terça-feira, 19 de abril de 2011

FACES

FAVELA BRAVA


“-A bala é minha. Me deixa comer, seu filho da puta.” –Gritou empurrando o outro com a asa esquerda, batendo simultaneamente a palma descalça junto de um enlameado de água suja, com o que uma galinha preta saiu espavorida debaixo de uma ruína de madeira.

No dia em que Dedinhos Moles foi morto pela polícia, a notícia correu célere e, no morro, ninguém lhe chorou a sorte.


“-É melhor assim.”


“-Esse hóme era um doido várridão.”


“-Ele era sanguinolento.”


“-Tu tava aí. Ele passava e não ia cum a tua cára e ele te dava um tiro só porque não ia cum à tua cára.”


“-Esses neguinho aí. Tu tá vendo? Têm a mão aleijada. Sabe porrquê? Os garôto andavam roubando por aí, coisa pequeninina, sem importância, mas como o cára não queria que incomodassem a sua bôca di fumo, aí ele baleou eles, como castigo e exemplo pár’ós outro.”


“-O qui é qui você pensa qui é um cára qui corta as orelha e à língua de um sujeito e as espeta num pau, bem no meio da favela?”


“-Nem as garôta qu’êli tchinha…”


Ninguém apareceu a reclamar o cadáver de Dedinhos Moles.


“-Beato Salú era diferênte. O cára andava ná rua, no meio das péssôôa. E era amigo dá gárôtáda, dava sempre coisas p’rá êlis. Os minino gostavam dêli. E era bom p’rás péssôa sim senhor. Págáva rêmédio, empréstáva dinhéro, coisas assim… Às veze, traziam camião cheio di comida e davam p’ró povo ái. Às pessôa até qui respeitavam êli. Más á polícia deu mão nêli. Foi um outro cára qui o dénunciou. O cára qui tinha ficado com á bôca di fumo áo Beato Salú quando êli têvi di fugir p’rá Báhia. Os policiau cercaram a casa, o Beato résistiu e êlis mátaram êli. Coitado do Beato Salú.”


Parati, 13 de Agosto de 1995

4 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Quem não conhece outra forma de viver, tem de gostar da que vive, seja ela monástica ou violenta...

-Vorta, gringos de merda, fios de uma puta cadela. Vêm que estou esperando por oceis! Vêm que vou cortá o bago de todos para fazê fritada, cambada de chifrudos!

Reza a tua crónica que o Beato morreu como um santo...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

E assim foi, Beato era bandido bom que nessas coisas da banditagem, também há os que são maus.

Aquele abraço, companheiro

Luís

Amélia Oliveira disse...

E há Favela Brava, mas também há Favelinha Boa... lembrei-me de quando um dos meus filhos foi fazer um estágio na Univ de S.Paulo (USP) e coube-me a mim, que nunca lá fui, tratar do alojamento...Não foi tarefa fácil, porque eu estava em Portugal, ele na Univ em Inglaterra e o alojamento era no Brasil... contactei a USP e 'agarrei-me' à primeira pessoa com quem falei ao tel (ficámos grandes amigas, devo dizer!). Bem, para não esticar muito a história, depois de muitos tel e emails entre todas as partes envolvidas na procura do dito alojamento, lá foi o rapaz rumo a SP fazer seu estágio - e quando chegou deparou com um quarto numa residência numa favela!!! Muitos telef depois, a minha amiga tranquilizou-me um pouco dizendo 'Não se préocupa não: é fávelinha bôa'!!! E a namorada, que por essa altura também já lá estava, passou então a achar que os tiros que se ouviam durante toda a noite não passavam de fogo de artifício... E tudo correu bem e o estágio foi um sucesso!

Amélia

Luís F. de A. Gomes disse...

Não posso dizer que conheço São Paulo, se comparar com a experiência ou o acumulado de experiências que já vivi no Rio, onde até já trabalhei num dos mercados abastecedores, justamente com pessoas que na maioria eram faveladas.
É como o Coca-Cola díz numa história mais adiante, ainda que referindo outro lugar. "-Aquilo lá tem muito bicho ruim..." Mas também tem muita gente boa.
Tenho acompanhado o Brasil desde há trinta anos e isso não pelo facto de lá ter estado, sobretudo porque se trata do único talhão da Terra de que sinto saudade, pois são inúmeras as vezes em que dou por mim a ver imagens, a sentir cheiros, brisas e até quadros que vi nesse país continente de que, mesmo não precisande de ter o passaporte ou a nacionalidade para nada, também me sinto natural e não tenho dúvida que, naquilo que me tenho vindo a construir como homem, como pessoa humana, tijolinhos importantes lá estão que têm a marca dessa outra margem sul, no caso, do Atlântico.
Ora para aquilo que interessa e se olhar para trás, para o Brasil que a literatura cantou - só para dar um exemplo, cito "A Seara Vermelha" do meu Mestre Amado - fácil é de compreender que a(s) favela(s) sempre fo(ram)i alimentada(s) antes de mais pelas migrações que a pobreza impõe àqueles que nada mais têm a não ser a demanda das cidades em busca de uma qualquer forma de gtanhar o pão. Creio que esse foi o principal motor que ao longo do século vinte as fez crescer e ainda nos anos sessenta, princípios da década de setenta - Zélia Barbosa, "Sertão E Favelas", um álbum inesquecível da cantiga socialmente empenhada - aquela(s) aparecia(m) nas músicas essencialmente como lugares de pobreza, universos de morada e cultura dos pobres.
O que fez a(s) favela(s) passar(em) dessa condição ao que se chama de favela brava, foi o crime organizado associado ao narcotráfico e foi a partir daí que a violência descontrolada tomou conta daqueles morros.
Seria uma longa conversa aquela que poderíamos desenvolver a partir daqui, pois um dos males do mundo moderno, um dos inimigos - se assim se pode falar - de uma civilização que tenha por norte a dignidade do homem e a procura de um eterno evitar das injustiças - pelo menos as evitáveis - deste mundo, é justamente o crime organizado e as associações ou as ramificações em que se incrusta nas sociedades, mormente com os meios do poder, político e financeiro.

Tenho para mim que o controle desses monstros é uma das lutas pela civilização do futuro.

Luís