terça-feira, 12 de abril de 2011

FACES

HOMEM DE LAMPIÃO

Meu avô foi Meia Leca, braço direito de Lampião, quem o chamou desse jeito e a quem foi fiel até à hora da morte.

Cumpriu dezanove anos de cadeia e quando saiu, sem qualquer hipótese de reatar o cangaço, arranjou trabalho como funcionário público numa cidadezinha de Pernambuco e aí veio a retirar-se, velho e cansado, com o sonho de um dia poder possuir um fusquinha para ir à pesca e dar umas passeatas com a sua terceira mulher.


Os cangaceiros lutavam contra as injustiças dos donos da terra e matavam e roubavam para castigarem os ricos e darem aos pobres.


Eu não, eu não quero saber dessas questões. Eu roubo para viver e porque não estou para ser escravo de ninguém. A certas horas do dia, pelos lados da ilha de Santo António, há sempre algum relógio ou outras coisas prontas a escorregarem para as minhas mãos.


Às vezes até parece que fico rico e sempre que isso acontece, tenho namoradas.


Há outros como eu e uma vez por outra fazemos assaltos em bando. Mas eu prefiro andar só, ainda é cedo para ter uma quadrilha e aqui no Recife ninguém é amigo.


Eu não quero ser como o meu avô Zeferino, o Meia Leca que foi braço direito de Lampião e ali vai morrendo, reduzido a pescarias e ao sonho de ter um fusca.


Eu quero mais e quero-o para mim e não me interessa que por causa disso não chegue tão longe como o velho. Afinal que valor pode ter esta vida? Eu não quero saber dessas coisas de justiça e injustiça. Eu roubo aos ricos porque são eles que têm valores e dinheiro e eu não. E se eu mato algum é porque isso me dá raiva.

Recife, 6 de Agosto de 1995

3 comentários:

A.Tapadinhas disse...

A grande vantagem do escritor é que ninguém o obriga a ser politicamente correcto. Cada um dos seus protagonistas pode fazer ou pensar o que lhe der na real gana sem qualquer espécie de pudor ou constrangimento.

Perfiro num lembrar as mortes que fiz e deixá que Deus e o Demo se orgulhem de todo o ato praticado, pois tudo é arte pessoar deles!

O neto de Meia Leca tem a cabeça cheia de sonhos e essa razão faz dele um homem, como qualquer de nós...


Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Pela sua natureza, as artes e as ciências não são compatíveis com constrangimentos à sua criatividade.
No caso das segundas, poderemos colocar os limites da deontologia e da grelha de valores que tomamos por mais convenientes para a vida em colectividade, isto é, podemos avaliar se daquelas resultam benefícios para a humanidade e em conformidade tomar uns por bons e outros por rejeitáveis, mas isso é à posteriori, no momento da produção do trabalho propriamente dito, o cientista executa-o de acordo com a sua curiosidade e vontade de desvendar um problema e nem mesmo é líquido que isso aconteça por motivos pessoais altruístas mais que pelo gozo pessoal de resolver algo que até aí estava em aberto.
O mesmo se passará com as artes e a literatura não foge à regra. Quando se escreve, não teria qualquer sentido estar a fazê-lo atendendo a algo mais que a lógica própria daquilo que se quer formular. Por outras palavras, não seria razoável que se escrevesse atendendo a pontos de vista e definições de gosto fosse de quem fosse.
Sinceramente não sei avaliar como será, por exemplo, na pintura, ou na música que tanto me atraem enquanto apreciador, mas a característica que mais me atrai na literatura é o facto de não haver paradigma para ela. Com efeito, não há um modelo que possamos aplicar e por ele dizer, isto é, aquilo não é um objecto literário; esta peça faz, aquela não faz parte do património literário de uma determinada cultura. Em síntese, não será uma afirmação sem conteúdo nem falsa, se considerarmos que a literatura será aquilo que o escritor consiga fazer com ela. Para meu gosto, é precisamente esse o desafio que mais entusiasmo provoca, mas não me vou dispersar por aqui.
É claro que existem correntes literárias, a esse nível poderemos dizer que este romance é realista e aquela novela é caracteristicamente romântica, aquele Autor se enquadra no surrealismo ou como sucedeu com um Kafka, aquele conseguiu uma obra singular que está para lá de qualquer tendência classificativa. Existem os géneros literários e naturalmente diremos que aqui estamos perante um conto, ali uma novela, num outro caso um romance e ainda que admitindo que poderemos encontrar exemplares que façam a fusão entre aqueles, ou alguns deles, espera-se que respeitemos o que está convencionado e que portanto aqueles obedeçam a determinantes critérios em função dos quais estabelecemos que se definem.
Mas nada disso apaga o facto de não haver um paradigma que nos diga o que é ou não é literatura e é essa a característica que mais me agrada nela.
Há múltiplas opiniões a esse respeito e sequer haveria aqui espaço para abordar uma minora entre elas. Direi que na minha preferência pela tradição e património realista, poderemos considerar o que defendeu um André Malraux, na “Rainha de Sabá”, segundo o qual importava viver para escrever e só escrever o que se viesse ou, em contraponto, com a posição de Hemingway, o Ernest, para quem a literatura mais do que imitar a vida deveria confundir-se com a ela, apenas tendo valor se conseguisse ser tal qual a vida. Tenho para mim que a primeira daquelas propostas é de um radicalismo desnecessário e inviabilizador e por isso acho a segunda mais respeitável. De qualquer modo, nenhuma delas me serve de guia.
(cont.)

Luís F. de A. Gomes disse...

Prefiro o desafio de criar mundos, inventá-los, o mesmo é dizer, compor biografias e dar-lhes o sopro de contextos e do movimento e nesse sentido a regra de ouro a que atendo e consequentemente o limite que me imponho é que esse mundo ficcionado possa ter vida para lá das páginas a que o confinei, quer dizer, seja de tal forma que nos permitisse dizer que o mesmo bem que poderia ter existência real e estar aqui entre nós.
Nesta medida seria um desperdício que se escrevesse atendendo a normativas politicamente correctas ou não. Se queremos inventar um mundo, então deveremos fazê-lo a partir do modo como o vemos e pensamos que ele é. E podemos fazê-lo precisamente pela liberdade criativa que pela natureza da arte dispomos logo à partida. E se a personagem é politicamente correcta ou não, se a podemos tomar como boa ou má pessoa, se o que faz pode ou não ser avaliado de um ou outro jeito, essa é, por sua vez, a liberdade que pertence ao Leitor e que, na minha perspectiva, deve ser impreterivelmente respeitada.
Não tenho como dizer que não se trate de uma opção de gosto, mas sempre me revi naqueles escritores e naquelas obras que nos apresentam uma história sem nos quererem impor uma visão do mundo, uma moral. É amplamente preferível construir tramas, esculpir rostos que possam servir de alegorias que mais que pretender ensinar o que quer que seja, criem inquietações, levem o Leitor a colocar perguntas e dúvidas sobre determinadas questões e a partir daí a reflectir sobre elas e esse é o desafio que lhe assiste, apesar de ser suficiente que leia, entenda a história e que a mesma muito simplesmente lhe agrade e, por isso, nem mesmo à inteligência daquele tem sentido que se façam concessões.
Ora o neto de Zeferino, ou para sermos mais exactos, pelo menos aquele neto do Zeferino, o Meia Leca, obedeceu aos critérios que expus e de acordo com os quais apenas quis que fosse mais uma humanidade possível, só isso. Se depois do raspar da unha, há mais contornos e miolo por descobrir, esse é o prémio que sempre merece aquele que descobre. Seja como for, a verdade é que aquele neto, afinal, é um homem, como qualquer de nós.

Aquele abraço, companheiro
Luís