domingo, 17 de abril de 2011

A DÍVIDA INTERNA DO NOSSO ABASTARDAMENTO

Vendas Novas, 4 de Abril de 2011

SEMPRE tive – e de certo que o defeito é meu – dificuldade em entender como podem dizer-se coisas tão absurdas como «pode mudar-se de carro, de mulher e até de nacionalidade, mas não se muda de clube»

Ora, Mário Soares costuma dizer que só os burros é que não mudam. Será por isso que não se muda de clube?

Os craques futebolísticos, que de burro têm pouco, quando chegam da América do Sul, dizem sempre ser do clube que os contrata desde pequeninos e partem invariavelmente para as europas mais bem pagantes logo que surgem as ridentes oportunidades de acréscimos de euros. «Yo non soy tonto», dizem eles então. E dizem bem. Mal, ficam os fiéis na esclerose que os toma (parece que sem cura, pelo que afirmam).

Numa campanha eleitoral de um certo clube – chamemos-lhe de Miau – dizia o candidato que se tornaria presidente: «sabem como vivemos lá em casa o nosso Miau?» Depois de uns segundos de suspense concluiu: «como uma seita». Ora aí está!

Uma figura pública foi ainda mais longe, declarando: «nunca tive por nenhum dos meus maridos o amor que tenho pelo Miau».

O fenómeno clubístico em Portugal (e também nos outros países que sofreram ditaduras prolongadas) é, no mínimo, esquizóide; não se gosta do clube da terra, gosta-se do clube que tenha características imperiais, num desejo doentio de que todos os outros sejam exterminados. Sequelas, sequelas...

Quando, no princípio dos anos oitenta, Desmond Morris, o celebrado autor de «O Macaco Nu», publicou «A Tribo do Futebol», a inocência que ainda nos restava não nos permitiu sequer um sorriso benevolente, pois há muito, especialmente nos meios «do contra», se criticava a coisa. No tempo da outra senhora versejava-se: «Fátima, Fados e Bola são a única distracção dum povo que pede esmola».

Entretanto, o Fado aperaltou-se, despiu-se de desgraças, saiu das tabernas e atirou-se ao mundo com vontade de crescer e amealhar; Fátima esmoreceu e toda a religiosidade e sofrimento se transferiram para o fundamentalismo das tribos aguerridas que se esgatanham e sangram nos ofícios religiosos das suas catedrais ruidosas e assustadoras, instigadas pelos inquisidores e sacerdotes de serviço.

Quando vejo os guerreiros ululantes destas tribos de primitivos actuais com as suas achas de guerra e os seus slogans injuriosos, todo eu me arrepio.

Em termos de ódio irredutível à diferença e de desejo incontido de anular o outro, é mais compreensível – embora igualmente inaceitável – o da Al-Qaeda do que aquele que é exprimido pelas tribos cavernícolas dessa coisa a que chamam desporto-rei, mas que de desporto pouco tem e, de realeza, só as coroas que embolsam craques, penduras e aves de agoiro.

E tivemos de pagar helicópteros e batalhões armados até aos dentes, para evitar que a Líbia se instalasse em Lisboa!

A dívida externa sobe, o deficit das contas públicas apodrece, mas as tribos são indiferentes a tais somenos: espumam de raiva e arrogância entre berros, ameaças e agressões, permitindo-se algumas das suas tropas de choque – oficialmente diz-se claques! – ostentar símbolos e cores nazistas,

Entre os berros – e quem não berra não é dos nossos – o palavrão democratizou-se de tal forma que quem com olhos de etólogo olhasse de fora diria que finalmente se atingira a igualitarização de doutores, engenheiros e trolhas como se toda a vida se desenrolasse numa imensa taberna.


Abdul Cadre

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