terça-feira, 3 de setembro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Quem por vezes perdia horas e horas a fio de roda das fotografias da família era o João que, ainda hoje, nas horas vagas da sua intensa e absorvente actividade de cirurgião, cultiva o gosto amador pela História que herdou do pai e continua a alimentar-lhes uma união de respeito mútuo e profunda cumplicidade de colóquios e confidências e que logo na meninice e depois pela adolescência fora se entretinha tardes inteiras com atenções perdidas nas imagens que, para ele, assim o expressava no diz que disse da mesa das refeições, eram como que um meio de retroceder no tempo e ora reviver experiências pessoais normalmente agradáveis, ora executar uma espécie de viagem a épocas em que não vivera e que o engenho e argúcia do fotógrafo permitiam reconstituir. Como era encantador vê-los, nas ocasiões em que partilhava a paixão e não se evadia na solidão do quarto, rindo de pormenores de expressões de rostos que o pai parecia fadado para só captar nas mais bizarras que, apimentadas pelos reparos incisivos e encharcados de humor do mais novinho que ainda mais agravavam a fealdade e simultaneamente lhe conferiam uma envolvência que multiplicava as gargalhadas, não raramente até ao ponto em que após rebolarem pelo chão e os sofás, ambos se rendiam ao não poderem mais com que se acalmavam para passarem à risota seguinte. Tenho tanta pena dos pais que passam ao lado do crescimento dos filhos. Quem sempre cuidou das fotos familiares foi o Manuel que alhures na vida, creio que por influência do Artur que sempre teve o hábito de incluir o retrato na ficha biográfica daqueles junto de quem procedia às recolhas musicais, percebeu como a técnica poderia ser útil para o seu interesse particular pela Natureza e que ao longo de todos estes anos ele tem materializado num levantamento exaustivo de todas as espécies da flora e da fauna da região de que, nas horas vagas, tem compilado exemplares em herbários, colecções fotográficas e, na vertente geológica e mineralógica da recolha, de rochas e minerais, a respeito do que reúne e junta a informação disponível a que consegue chegar e igualmente bibliografia quanto baste. Antes disso que se iniciou pouco depois do João ter nascido, já era ele que tirava as películas com que, de vez em quando, queríamos registar um ou outro momento mais feliz, este ou aquele local que nos caíra mais fundo. A partir do momento em que ele percebeu o quanto aquele seu hobbie mais querido e o único em que imbuía zelos profissionais, ganharia com um domínio apurado daquela que também é uma arte, decidiu aprender a sério a escolher e a fazer o registo das coisas e seres vivos e, desde então, não mais deixou de ser ele o repórter da família e, pela facilidade –mais tarde, além do laboratório fotográfico que existe na escola, montou o seu numa readaptação que, para tanto, fez na arrecadação que temos no quintal e onde há vários anos tem o seu estúdio e escritório particulares- começou a medrar paulatinamente para a dimensão que possibilitava os tais gozos vespertinos aos nossos filhos. E nunca houve qualquer necessidade de alguém se preocupar pois não houve ocasião em que ele não tratasse de ordenar os exemplares de modo a ficarem apresentáveis, pois sempre desceu ao mais pequeno detalhe de ter tudo aquilo organizado por temas e datas, de modo que, ao folhearmos os álbuns, possamos usufruir de uma espécie de filme daquilo que temos sido, do que temos feito e dos sítios por onde temos andado. Posso dizê-lo agora com conhecimento de causa, pois acabei de ficar suspensa no prazer que nunca tinha experimentado de me deixar enlaçar por recordações e minúcias de uma boa parte da felicidade que tem sido a minha existência. Sinceramente não me tenho na conta de uma pessoa saudosista e o melhor comprovativo disso é que jamais me tinha detido nesta parcela do historial familiar, não sou como a Raquel, a mãe, ou a Catarina que, amiúde, estão a perguntar se nos lembramos disto ou daquilo e que perante os usos mais aligeirados e, aqui e ali, admito, um tanto ou quanto ousados destas novas gerações, invariavelmente se apresentam prontas para apontar defeitos e falhas enquanto se lastimam por já não ser como nas suas juventudes que, aí sim, tudo parecia ser mais alegre e saudável e até o tempo atmosférico era mais agradável, com Verões que eram quentes e longos e Invernos que eram invernias de verdade, seja como for, esta tarde senti um impulso irresistível para me deleitar com a meninice dos meus tesouros ali presa naqueles registos, embevecendo-me uma vez mais de quando eles eram pequeninos e em tudo dependiam de nós e também com o rosto bonito e confiante com que o Manuel me enleou no enamoramento de que resultou o amor que continuo a sentir e desde a primeira hora me maravilha. E foi de tal maneira forte e doce esse reviver que depois não fui capaz de resistir e fui contemplar as velhas fotografias do paizinho e da mãezinha e os dois álbuns que constituem o espólio das suas vidas de casados e que só a morte separou. O João e a Rosarinho e o pequeno Manuel que está cada vez maior, passaram o dia de ontem connosco, desta feita com o propósito adicional de nos trazerem notícias do irmão e respectiva família, com quem estiveram recentemente em Paris. A novidade é que eu vi pela primeira vez o rostinho da recém-nascida Sofia, a minha netinha mais nova e o terceiro dos meus netos. Há alegria que mareja os olhos do avô por sabermos que todos estão bem e ainda mais agora que o Carlitos foi como que presenteado com uma coluna num jornal, “Liberátion” que, segundo as palavras respeitosas da cunhada, está a ter algum reconhecimento. E depois foi o mote do café da noite, as fotografias que os turistas fizeram na cidade e que todos quiseram tirar à casa e à irmandade distante para que saudades mais tristes fossem aplacadas e os que estão longe possam testemunhar os semblantes daqueles a quem querem bem e tão poucas vezes podem abraçar. O meu amor, explicando ao neto como o pai dele, em miúdo, justamente se deliciava a ver fotografias e, por entre a bonomia do riso, respondendo à coscuvilhice da criança sobre as carantonhas e macaquices do progenitor e do tio. Pois deve ter sido tudo isso que esta tarde me induziu para um verdadeiro regresso ao passado que muito me satisfez.
À parte disso, trouxeram-nos também o último long-play do Zé Afonso, o “Venham Mais Cinco” que já ouvi mas terei que escutar novamente para saborear a preceito o que me pareceu ser uma obra-prima e o que melhor já alguma vez foi feito entre nós e ainda os dois trabalhos de um tal de José Mário Branco de quem ele nos falou ao jantar e muito recomendou e é, nada mais nada menos que o responsável por todos os arranjos desta recente gravação, assim como do “Cantigas de Maio” de que eu gosto bastante e, porque é preciso aproveitar estas oportunidades, mais dois longa durações de um novo intérprete, Sérgio Godinho que o Carlos fez questão de oferecer ao pai o primeiro e o segundo a mim. Estes últimos discos talvez fossem difíceis de arranjar, mesmo em Lisboa e até o de José Afonso não seria o mais conveniente para o dono da loja de electrodomésticos que acumula a vertente discoteca aqui do lugar, tentar encomendar para pôr à venda. Problemas que cheguem com as autoridades e os esbirros da PIDE temos nós tido mais que suficientes para estarmos a insistir por uma razão que seguramente não será a mais importante. E pelo que tenho estado a ouvir pelas letras que o Mário Branco canta, o homem não se limita a gritar contra o regime, há ali um olhar sobre a essência da própria sociedade e que tem muito de subversivo. Mas dá para ver que musicalmente é muito bom e há um tema, com um poema de uma das novas poetisas portuguesas e que não conheço, Natália Correia, francamente bom, muitíssimo bom, atrevo-me a dizer, a todos os níveis e é das melhores expressões de angústia existencial, se não a número um que alguma vez tenha lido ou ouvido. “O animal que espeta os cornos no destino.” Que melhor imagem para aquilo que mantém um status quo de desgraça e de opressão?
Viver num país assim é de uma pequenez tão triste.

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