terça-feira, 17 de setembro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Portugal saiu literalmente à rua como nunca antes se viu, pelo menos, como não há memória que alguma vez assim o tenha feito. A verdade é que tanto quanto se pode avaliar pela leitura dos jornais e as notícias da rádio bem como pelas imagens que a televisão mostrou, de Caminha a Vila Real de Santo António, por todas essas cidades e vilas mais importantes, o povo veio para a luz do dia e inundou as praças e entupiu as vias, entre casarios, simplesmente para mostrar a alegria que se lhe colou na alma pela mera possibilidade de finalmente poder gozar em paz um feriado que celebra o trabalho e, com isso, a força criativa e criadora que é a sua. E cantou-se, cantou-se o hino nacional e cantaram-se hinos a todos os que não viraram a cara e mantiveram acesa a chama da liberdade que hoje, com um civismo que dá grande lição ao mundo, consagra com a exemplaridade de um gesto que por isso se afirma como a determinação de não mais querer permitir que a mesma se apague nas múltiplas veredas do quotidiano. E as pessoas passearam-se, entre umas e as outras, sorridentes, dando largas ao gozo de não terem que esconder a incrível felicidade por já não terem de se preocupar com os ouvidos das paredes e os olhos nas sombras esconsas, cumprimentando-se e felicitando-se pela taluda de serem testemunhas de um momento único e inolvidável, abraçando-se e dançando sobre o asfalto, cravos vermelhos na lapela e vivas aos libertadores nas gargantas com que, no apoio às oratórias de ocasião e das que rompiam feitas papoilas nos campos, entoaram slogans de incentivo à estrada que agora se abriu plena de possibilidades que ainda haveremos de descobrir. Foi lindo, lindo de se ver, maravilhoso de se viver e foi tão bom cruzarmo-nos com os outros rostos e ao fazê-lo passarmos por um sentimento de orgulho num país que as tragédias das injustiças pintaram de cinzento e esta primavera de esperança alindou com as cores, as lindas cores de quem acredita num futuro melhor, de quem finalmente pode acreditar num futuro melhor. Nesta última semana tenho reparado que as gentes caminham com outra leveza, se expressam com outra confiança e até me parece que mais respeitosamente, mais amistosas para o semelhante, como que a provar que os portugueses estão prontos para viverem numa sociedade livre, onde os mais simples escolhem aqueles que tomam por mais capazes para tratarem de assuntos que dizem respeito à vida colectiva e ao bem comum. É tão curioso ver como os cumprimentos fluem entre os desconhecidos e todos querem manifestar ao outro a consciência de cada lugar. É uma espécie de inebriamento geral, chegando a parecer que há um qualquer vírus no ar a que ninguém escapa e a qualquer um induz este estado de euforia. No entanto, nada disso se pode comparar com a explosão deste dia em que os portugueses vieram para a rua cantar e dançar, só para mostrar que é possível viver em liberdade e em paz e, com a vontade de cada um de nós, construir uma sociedade mais justa, onde ninguém venha a ser impedido de encontrar um caminho só pela fatalidade de ter nascido pobre. Portugal está nas capas e noticiários do planeta e os portugueses, feitos aqueles que há séculos uniram as rotas marítimas e interligaram os diversos continentes, mais uma vez souberam dar um exemplo de grandeza até aí inalcançada, desta vez ensinando como a tirania pode ser derrubada sem guerra e sem que o caos se instale sobre as ruínas e as cinzas da ditadura que caiu. E foi desse modo que esta nação se sentiu, valente e imortal, por novamente ter levantado o esplendor de quem fala e sonha na língua portuguesa. Por mil anos que vivesse, jamais esqueceria a festa deste dia e o orgulho que sinto pela minha nacionalidade. Como seria de esperar, nós decidimos comemorar na Vila em cuja praça principal, a partir da varanda da sociedade filarmónica, estavam previstas algumas comunicações de personalidades envolvidas na resistência ao salazarismo e, entre elas, a do nosso representante que, por motivos óbvios pois até é o presidente da cooperativa, todos decidimos fosse o José Pedro. Gostei bastante do seu discurso de apelo à responsabilidade individual em que, para ser natural e viva, a liberdade se fundamenta. Mas daqui haveria sempre de partir uma comitiva do lugar pois, através do passa a palavra, os habitantes decidiram concentrar-se na praça do casarão pela manhã e munidos de algumas bandeiras vermelhas e muitas nacionais que nem sei de onde possam ter surgido e de dísticos com vivas ao vinte e cinco de Abril e ao movimento das forças armadas, em manifestação a pé, velhos, adultos e crianças, cantando em uníssono “Grândola Vila Morena” de José Afonso que foi a senha do golpe e a população elegeu tacitamente como o hino do movimento e que aqui e ali intercalaram com a “Portuguesa” e outras canções, estas de protesto a que os mais novos deram as letras que os outros se limitavam a trautear, lá foram todos por essa estrada fora, acenando a quem estava e a quem ia passando, com os dedos no v da vitória, vitória, vitória com que todos se saudaram, fazendo da entrada na Vila um acontecimento notado justamente pela multidão que ia desfilando pelas ruas em direcção ao epicentro dos festejos. Eu fui com eles, uma vez que o Manuel teve que seguir mais cedo para ajudar na organização do comício que ali ocorreu. Como poderia eu alguma vez imaginar que um dia haveria de caminhar naquelas ruelas estreitas sob os aplausos e vivas dos passeios e janelas? Mas foi isso que aconteceu e quando no regresso que fiz antes de todos, aproveitando uma boleia da Graziela que se esqueceu de levar uns medicamentos que não pode deixar de tomar, tive oportunidade de ver que o Vale da Esperança ficou deserto, completamente deserto, entregue ao silêncio do vento e das aves, pois nem os cães sentiram que tivessem alguma coisa para dizer perante a ausência dos donos e o sossego de ninguém passar por ali. Ainda nunca tinha visto o povoado em tão absorta quietude e com as portas todas fechadas, incluindo as do café e da papelaria e as da loja de electrodomésticos que se avistam da minha casa. E foi aí que percebi que certas mães mais novas levaram os filhos nos carrinhos, porque não houve quem quisesse perder a oportunidade de dizer estou aqui, para mais tarde ter como dizer, estive lá, naquele dia em que importou deixar clara a mensagem de não querermos voltar ao antigamente.
Tenho pena que os meus filhos e netos não estejam aqui para partilharmos esta alegria tão grande e tão intensa.

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