Estamos a viver os dias de graça deste novo poder, como se estivéssemos a assistir a uma lua-de-mel entre os portugueses e a vivência em democracia. Como é bom de ver, o povo, esse, continua alegre e sorridente e pela primeira vez na minha vida, coisa impensável há um mês atrás, vejo o lugar que o futebol sempre ocupou à mesa do café ser substituído pelos temas mais improváveis do que tem a ver com a organização da vida em sociedade. É incrível mas é verdade, neste últimos dias, quando entro no café ou no bar da associação, o que vejo e ouço são as pessoas a discutirem ideias sobre tudo e mais alguma coisa e da mesma maneira que antes era vulgar qualquer homem ter opinião sobre os lances, os golos, o desenrolar e o desfecho de um jogo da bola, todos têm agora a sua própria leitura e as mais variadas propostas a respeito dos mais intrincados problemas que afectam o país. Por sua vez, a política estatelou-se pelas praças e açambarcou o centro de todas as atenções. É certo e sabido que há nuvens negras no nosso horizonte e nas montanhas que teremos que escalar e vencer adivinham-se longos e espinhosos caminhos que deveremos ultrapassar para nos desenvencilharmos dos piores obstáculos a uma vida livre e começarmos a consolidar os alicerces da democracia, mas até isso conflui para que eu ache tudo isto um espectáculo maravilhoso e tenho a certeza de como os meus queridos pais se alegrariam com a oportunidade de assistirem a tamanha ventura. Os partidos políticos começam a organizar-se, uns surgindo da noite da clandestinidade, outros recentemente fundados nas possibilidades que esta abertura deu aos cidadãos e os militares, de acordo com o previsto, através da Junta de Salvação Nacional, decidiram entregar a chefia do governo a um civil, o Professor Adelino da Palma Carlos, conhecida figura das lutas da oposição ao salazarismo que, na qualidade de Primeiro-Ministro, constituiu uma equipa que reúne representantes dos vários quadrantes e sensibilidades que, pelo menos por enquanto, manifestaram maior expressão e visibilidade no panorama nacional e dentro de dias tomará posse para dar início à estabilidade governativa que garantirá a consolidação da legalidade e, com ela, do novo regime que se pretende democrático. A ser cumprido o programa do Movimento das Forças Armadas, dentro de alguns meses teremos eleições livres para uma assembleia que irá elaborar e aprovar uma nova constituição, a partir da qual os portugueses passarão a escolher aqueles que querem ter por governantes e, dessa forma, a viverem aquilo que poderemos designar pela normalidade de um regime democrático. Para já, toda a gente sabe o que é pior ou melhor para Portugal e não há cão nem gato que não esteja seguro que um certo nome seja preferível numa determinada pasta. A dar ouvidos às vozes que se vão fazendo escutar e avaliando apenas pela pequena amostra que decorre do quotidiano das minhas relações, os problemas são mais que muitos, às vezes até parece que está tudo por fazer o que também não é bem assim e vão desde aqueles que se queixam porque a electricidade ainda não chegou às suas ruas e casas ou que lhes faltam os esgotos devidos e apropriados a uma habitação saudável, até às lonjuras de escolas para os mais novinhos e a miséria de salários que só o rol dos merceeiros impede muitas e muitas famílias de terminarem o mês sem comida no prato. E tudo leva a crer que todos se sentem como que na obrigação de dizer qualquer coisa e tantas são as opiniões que quase se poderia afirmar ser esta uma daquelas situações em que temos tantas sentenças quantas as cabeças. Felizmente, aqui, nesta nossa comunidade que já conta perto de duas centenas de habitantes pois, enquanto povoado, já não podemos contabilizar apenas os núcleos familiares dos membros da cooperativa, seja como for, ainda bem que aqui no Vale da Esperança, todos os adultos são alfabetizados e, na sua larguíssima maioria, por via do trabalho que tanto a escola como a associação cultural desenvolveram, quer em conjunto e coordenadamente, quer cada uma por si, devido a isso temos homens e mulheres que não só sabem ler e escrever, como igualmente estão capacitados para lerem e compreenderem os textos mais diversos. Talvez por isso a consciência do que importa aprender seja mais aguçada e não espanta que tenham surgido pedidos e sugestões para que através da associação se organizem cursos de iniciação à política para quem queira conhecer mais de perto essas matérias, coisa que a comissão cultural começou já a tratar e que na direcção da nossa escola, por simpatia, gerou a ideia de, no próximo ano lectivo, transformar a disciplina de organização política e administrativa da nação, dos cursos complementares, num verdadeiro curriculum de introdução aos conhecimentos e teorias políticas, bem como do funcionamento e características dos diversos tipos de regimes políticos e sociais. É a gestação da vida democrática e, tal como em todos os períodos em que a gravidez é desejada, é um real encanto de se ver. Mas como é de se esperar em cada parto, é natural que venha a dar dores que só não sabemos quão fortes poderão ser. Há pois um vulcão que se alimenta desta sede de expor e participar, há toda uma caldeira que vai inchando e pressionando a chaminé e certamente explodirá e dessa corrente de lava sairá muito do que poderá vir a influenciar os contornos de um amanhã que, pessoalmente, é o meu mais profundo desejo, espero venha a ser o mais justo possível, o mesmo é dizer, onde os filhos dos mais pobres, pelo mérito do seu esforço de aprendizagem e empreendimento, possam aspirar a algo mais que a repetição da pobreza que tiveram nas casas em que foram criados.
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