Agora já posso falar, pois tudo indica que o sentido das coisas não é aquele que pessoalmente temia e independentemente das contra-ofensivas que eventualmente sucedam e dos revezes e reviravoltas que ainda venham a verificar-se, pelo menos por enquanto, todos os sinais são de efectiva mudança e em termos da realidade que se procura consolidar, é um facto observável que o regime caiu e, como dizia alguém a propósito de um resultado de futebol, haja o que houver, essa alegria ninguém nos tira. E é de alegria que se trata, uma alegria tremenda que nem o medo face ao que possa estar para vir consegue conter e beliscar, mesmo ao de leve, a intensidade com que nos avassala. É caso para dizer que o sonho se materializou e que o dia, mais, muito mais que esperado, o dia tão desejado chegou finalmente e, apesar das mortes e aflições do parto, logo na forma de festa que, vejam só, coroou a expressão com o vermelho dos cravos com que as pessoas brindaram e ofereceram aos soldados que, em ritual de vitória, das espingardas para eles fizeram jarras. Nunca senti tanto orgulho por ter nascido portuguesa. Portugal vai ficar na História pelo feito de um povo que veio à rua apoiar a queda do tirano e a festejar sem o caldo cultural da vingança, só pelo gozo do júbilo da afirmação da conquista da liberdade e que ordeiramente seguiu a vida com a única diferença do contentamento por este ponto final à injustiça em que tem sido forçado a viver. Nem sei por onde começar, tal não é o deslumbramento pela dádiva de assistir a um daqueles episódios que ficam como marcos históricos e, não fosse isso suficiente, num trilho que, no mínimo dos mínimos, num aspecto crucial, o do fim da ditadura, foi de encontro aos meus anseios mais antigos e a mais bonita das minhas quimeras. Inicialmente não descartei a hipótese de estarmos perante um levantamento por parte da ala dura do salazarismo, interessada em manter essa posição de força e a guerra e que tem adeptos entre as figuras mais gradas da situação e os mais altos dignitários militares que, justamente por isso, provavelmente também teriam como colocar as tropas em posição de combate e tomar o controlo do estado e assumir a governação do país. Eu dei conta que algo de estranho se passava pouco depois de me levantar, quando, cumprida a higiene pessoal diária, cheguei à cozinha para efeitos do rotineiro pequeno almoço que, desde as idades em que os miúdos deixaram de precisar que os pais lhes preparassem todo o processo da comida até ao prato colocado diante das suas boquinhas comilonas, gosto de tomar sentada à mesa, repousadamente, com disponibilidade para atentar no que se vai passando por aí. É uma das consequências dos avanços tecnológicos. Desde que existem os rádios mais pequenos, os transístores, acho eu que assim se chamam, ganhámos o hábito de aproveitarmos a hora desta primeira refeição para escutarmos as primeiras notícias pelo Rádio Clube Português que, apesar de tudo, sempre é um pouco mais arejado que a oficiosa e oficial Emissora Nacional, para o que temos um pequeno aparelho numa das pontas do balcão, ao lado do frigorífico. Pelo primeiro comunicado que ouvimos e continuava a ser repetido a meio da manhã, todos ficámos a saber que uma parte das forças armadas se rebelara e estavam em curso operações em vários pontos do país e particularmente em Lisboa, com o objectivo de derrubar o governo e alegadamente alterar o poder e o estado das coisas em Portugal. Como não se identificava qualquer rosto, não era líquido que os propósitos fossem diversos de uma espécie de continuidade deste status quo sob outros mandos e comandos. Por precaução, até por não estarmos muito longe de uma das mais fortes regiões militares do nosso território continental, suspendemos as aulas e incentivámos a que todos regressassem a casa e assim passei todo o dia no lar, primeiro atenta aos noticiários radiofónicos, depois, ao fim da tarde, com o televisor ligado. Um pormenor que tomei por indicador foi a música que após a série de marchas em tons castrenses passou, ao longo da tarde, para o registo dos cantores portugueses bem conhecidos pelas suas canções de protesto e, com toda a sinceridade, senti um misto de espanto e euforia quando escutei os versos de um tema do Sérgio Godinho que prima justamente por ser um apelo explícito à revolta, a força que só serve para obedecer aos que nos obrigam a viver na injustiça. Aí formou-se-me a esperança no interior do peito e ainda mais inquieta fiquei quando o Manuel trouxe o jornal da papelaria do Hilário que hoje recebeu duas tiragens e mais exemplares tivesse mais teria vendido, o “República” com uma frase significativa no cabeçalho, “este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura.” Dificilmente uma clique interessada e empenhada em continuar a ditadura por outros meios permitiria este género de manifestações, sem qualquer dúvida associadas à liberdade e ao quotidiano de uma sociedade democrática. E pelo que os jornalistas nos davam a entender, o Movimento das Forças Armadas, como se auto-intitularam os revoltosos, era composto por um grupo de patentes intermédias, capitães e majores que, descontentes com o destino da pátria e a direcção dos acontecimentos nos teatros bélicos em que estamos envolvidos com tantos e tão dolorosos custos humanos e materiais, convencidos de não haver a possibilidade de nenhuma outra saída, tinham decidido organizar um golpe de estado para alterar o regime político em Portugal. Motivos de justificada esperança e não há muito, há menos de um ano, em Setembro passado, no Chile, vimos como a fúria opressora se abateu sobre a população desde o primeiro momento e como uma conquista da linha dura se traduziu num mar de sangue e violência que rapidamente subjugou o povo com a ferocidade de uma ditadura implacável. À noite ainda vacilei um pouco ao ver as caras sisudas da nomeada Junta de Salvação Nacional a quem competirá as responsabilidades governativas, até que seja reposta a legalidade e empossado um novo conselho de ministros com legitimidade para o exercício dos respectivos cargos. Pelo que fui capaz de perceber da prosa nem sempre clara do General, dos excertos que li do seu livro, não é para mim transparente que Spínola esteja do lado de um projecto democrático para esta terra e só não avanço que nada ali nos pode fazer pensar nesse sentido porque não fiz uma leitura integral e portanto admito que a tal questão me possa ter passado despercebida. Vê-lo como o homem forte do novo poder não me daria qualquer garantia de estarmos a caminhar para a desejável abertura democrática e nessa noite ainda disse ao Manuel que o povo saía para as praças em festejo, embora não fosse seguro que viéssemos a alcançar a almejada e mais que merecida democracia. Creio que aí, o ponto de vista mais inteligente foi o do José Pedro que em alternativa à posição analítica de pretender escrutinar a rota destes dias subitamente invulgares, avançou com a importância dessas manifestações de regozijo que tomaram conta das vilas e das cidades, pois será por essa pressão que o povo português conseguirá obter a sua carta de alforria e criar condições para que possa viver livremente, sem tutelas que só o menorizam e infantilizam. E se os portugueses têm dado uma lição de civismo ao mundo. Onde está a razão daqueles que justificavam a autoridade com o argumento de que o povo não sabe tomar conta de si, ao ponto de chegarmos à mesquinhez de termos que comunicar às entidades policiais cada sessão de cinema que apresentamos na nossa associação? Então essa mesma gente não se portou à altura numa situação tão extrema e perigosa como foi aquela que se viveu no largo do Carmo aquando do assalto ao quartel da guarda onde se refugiara o Professor Marcelo Caetano que se deveria render e entregar o poder? E não podemos esquecer que a canalha da PIDE ainda matou três ou quatro populares que assistiam e davam apoio aos soldados que cercavam a sede, na António Maria Cardoso. Mas o que decisivamente me fez crer estar perante o fim do pesadelo foi o que ocorreu ao fim do dia de ontem, quando libertaram todos os presos políticos, incluindo aqueles que são acusados de crimes comuns e que à partida não estava previsto virem a ser soltos como os outros. Aí acreditei verdadeiramente que Portugal mudou e depois de tantas décadas de amargura e repressão, vamos também nós ter a possibilidade de viver livremente e esperemos que também em paz. E já estão autorizadas as manifestações do primeiro de Maio que se avizinha, para as quais se fala no regresso das mais destacadas figuras da oposição, entre os quais o chefe dos comunistas, o Dr. Álvaro Cunhal. Aliás, foi abolida a censura e dada a permissão para todos os que se viram forçados a abandonar o país por motivos políticos e ideológicos possam retomar os seus lugares e vidas junto daqueles que lhes são queridos. É por isto que digo que agora já posso falar e sem receios bradar ao vento o quanto estou contente, por estar a testemunhar um sonho antigo ganhar realidade. Foi preciso que passassem três anos sobre o meu cinquentenário e trinta e três desde que iniciei estas linhas para que, sem qualquer preocupação, possa deixar este caderno sobre a secretária e tirar os outros do esconderijo onde até aqui os tenho mantido ao abrigo de qualquer rusga indesejada.
Pelo menos esta alegria, nenhum bandido a conseguirá tirar.
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