Lá vamos dando os primeiros passos da liberdade recém-conquistada e soltos que estão das mordaças da censura e dos punhos repressores da PIDE e da guarda que costumava refrescar os ímpetos contestatários dos trabalhadores com a ameaça das espingardas, os portugueses reivindicam agora as moedas que lhes podem melhorar o sustento e alargar a esperança de vir a dar aos filhos o futuro que, no passado, a eles foi negado. Quanto a mim seria de esperar que tal viesse a suceder e pessoalmente não me espanta que os jornaleiros nos tenham feito saber que querem um aumento de vinte e cinco tostões no preço do seu esforço e que os tiradores de cortiça tenham feito o mesmo quando o Acácio foi para acertar com eles a campanha deste Verão que vai ter início dentro de dias. Há greves por esses campos e nos restantes sectores, especialmente nas grandes concentrações industriais, os movimentos organizativos da actividade sindical estão se instalando a par da agitação em torno das melhorias salariais e das condições laborais. Os carteiros preparam-se para entrar em greve e avançam-se ideias para promover a consciencialização entre os funcionários, com atitudes como a que os noticiários relataram, de alguns deles terem feito descalços a distribuição do correio. Agora que o direito à greve foi estabelecido pelas leis que o governo provisório e a Junta de Salvação Nacional aprovaram, é natural que os portugueses exerçam essa pressão que acaba por ser um dos mecanismos daquilo que podemos ver como uma das manifestações de um processo de redistribuição da riqueza. Mas temo que se possam perder as noções dos limites e se ultrapassem patamares a que a economia não tenha como chegar e disso parecem ser indicadores certos protestos que aqui se fizeram sentir, entre alguns operários, ainda que poucos e percentualmente inexpressivos, como se as regalias sociais que aqui têm, como a escola gratuita dos filhos ou os cuidados de saúde garantidos, para além das certezas de reforma e casas confortáveis no presente, a rendas mais que exequíveis para os vencimentos que recebem, não fossem todas essas coisas uma forma de lhes exponenciar esses mesmos salários. Mas é a expressão de um país que se começa a dividir pelos partidos que vão aparecendo como cogumelos e começam a implantar-se um pouco por toda a parte, uns, como é o caso dos comunistas, muito melhor preparados que outros, alguns com propostas radicais de revolução social que, por via de militâncias e propaganda mais aguerridas, conseguem uma notoriedade que, muito provavelmente, a sua distribuição pelo terreno de modo algum consente. A verdade é que todos se sentem donos do caminho certo e a sociedade portuguesa começa assim a fracturar-se nessa pluralidade em alguns casos e aspectos irreconciliável e conflituosa. A democracia também tem que ser isto, não tenho dúvida e por muitos erros que se cometam e venham a cometer, temos de aceitar que toda esta convulsão que estamos vivendo faz parte da aprendizagem por que os portugueses terão necessariamente que passar. Estarão eles preparados para viverem em democracia, como aqui e ali vamos ouvindo? Com toda a sinceridade, tenho para mim que se trata de uma falsa questão. Ninguém está. É claro que há populações que podem ser mais esclarecidas que outras e portanto tenham mais e melhores suportes para se adaptarem a uma vida livre e com a possibilidade de escolha entre diferentes correntes políticas mas, mesmo essas terão que passar pela aprendizagem da tolerância e a aceitação da coexistência que isso implica. Pelo menos é a lição que podemos extrair desta comunidade que criámos já lá vão mais de trinta anos. Ora nós não somos menos capazes que os outros e, em conformidade, igualmente conseguiremos fazê-lo. O que é a democracia? Genericamente diz-se que é o governo do povo, pelo povo e para o povo, com o que se pretende significar que a população escolhe ou deve escolher aqueles que quer por governantes que, dessa maneira, exercem o poder em seu nome, sendo de esperar que o façam em função do bem comum, isto é, dos interesses da maioria, sem esquecer aqueles que dela possam estar arredados, especialmente, entre esses, os mais pobre e os mais fracos. Francamente, não vejo qualquer motivo para que os portugueses não possam chegar a tanto. Será que a América dos princípios do século dezanove que o francês Alexis de Tocquevile visitou e que tão bem descreveu e analisou em “De La Democratie En Amérique”, estaria mais preparada para deixar vingar uma tal forma de sociedade do que nós possamos estar hoje? Não creio. Creio, isso sim que não teremos como fugir à experimentação e à possibilidade de erro e, em conformidade, à necessidade de irmos caminhando e procurando aprender à medida que o formos fazendo. É pois decisivo que os homens do poder, deste novo poder, compreendam a importância da educação e através disso de um bom sistema de ensino a que todo e qualquer português tenha acesso e que lhe permita alcançar os meios para mais tarde saberem aprender a fazer as escolhas políticas de que sobrevivem os regimes democráticos e, ao mesmo tempo, todos os hábitos de responsabilidade cívica que fazem com que aqueles, mais que aceites, partam do consentimento e da consciência individual que os podem transformar num modo de vida. É tal e qual o ensinamento que podemos obter num romance maravilhoso de William Golding que o Carlos Manuel me ofereceu no aniversário; a civilização começa precisamente na cabeça de cada um de nós e é aí que reside a primeira barreira para toda e qualquer selvajaria. É facilmente perceptível que, para tanto, a escola terá sempre um papel fundamental pois sem voltar a cair numa ditadura, não teríamos como pretender que todas as famílias o fizessem de igual modo. Da mesma maneira que para evitar que os mais fortes se aproveitem da liberdade para, em seu proveito, esmagarem os mais fracos, há que lançar desde já os alicerces de um sistema de justiça eficaz e que, de igual forma, possa aplicar a lei a todos. Não seremos nós capazes de o levar à prática? Nada me leva a pensar o contrário.
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